sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Pink Bar, o bar do Zé

Reprodução bem aproximada do logotipo
É isso mesmo, o bar era cor-de-rosa. Cor-de-rosa e preto. A história é longa e cheia de detalhes curiosos. Éramos um grupo de amigos que entre os anos 80 e 90 nos reuníamos para tocar e cantar, sair para shows etc. Morávamos em São Cristóvão e nos concentrávamos preferencialmente na casa do Zé Renato, cuja enorme família era festeira e ainda reunia outros agregados. Fizemos altas festas e churrascos entre inesquecíveis jam sessions. Tinha o Luiz (meu grande parceiro já apresentado por aqui), o Jorginho (irmão do Zé), o Mirinho, Marcio e Marcelo (irmãos do Zé), o Abel (irmão branco, meio adotivo, do Zé) e outros mais novos e mais velhos da turma, filhos e amigos da família.

Parte da turma, a partir da esquerda:
Zé, Jorginho, Tom, Assis, Luiz e Mirinho num daqueles churrascos.

Duro e sem emprego, um dia o Zé Renato virou e falou: _vou abrir um bar. Pensamos, “que legal, vamos ter um point e dar um sossego pra Tia Carmen e pro Tio Jorge”, respectivamente mãe e padrasto do Zé. Foi mais ou menos o que aconteceu, embora duvide muito que D. Carmen ou Seu Jorge (mãezona e paizão) se incomodassem conosco. 

Quando, enfim, o Zé arrendou o bar, ou melhor, o boteco, ou ainda, o pé-sujo, fomos até lá pra ver. Nosso “point” parecia ter saído dos anos 50/60, direto do túnel do tempo. O bar tinha aquele estilo pequeno com balcão enorme. Aqueles do tipo português, enorme, revestido de fórmica com listras coloridas, formando uma espécie de S que ocupava quase todo o pequeno espaço do salão, ou melhor, salinha. Beleza! De dia, o Zé ralava com seu fiel escudeiro Aécio, servindo rango pra uma clientela que já frequentava o local e à noite, passávamos por lá pra bater papo e, obviamente, tocar algo despretensioso: um voz&violão e uma caixa de fósforo. O fato é que um público que costumava chegar pra uma cerveja de fim de expediente e mais uns alunos que estudavam nos dois colégios colados ao bar chegavam e ficavam curtindo a gente.

O Zé com seu faro comercial, mais uma vez teve um insight e sugeriu: Por que não plugamos isso tudo, organizamos um setlist e mandamos ver. É nossa hora de curtirmos um som com público e tudo mais. A coisa que era feita de qualquer modo, precisou de organização e um pouco mais de seriedade. Logo, ficamos somente Luiz, Mirinho e eu com a incumbência, porque, apesar de todos fazermos um barulho bacana, os demais acabaram roendo a corda. Então, nasceu ali o trio formado pelo violão do Luiz, a percussão e o backing do Mirinho, a minha voz e a pandeirola que eu também fazia. A coisa pegou de um jeito tal, que demorou muito pouco tempo, talvez um mês ou dois pro Zé parar tudo pra uma boa reforma. O público não conseguia se acomodar, porque o balcão ocupava mais da metade do bar e a banda, o resto. O público que se conformasse com a calçada! Ora, sejamos razoáveis, o público merece um pouco mais de carinho, né?

Pois bem, paramos um tempo. A reforma liderada pelo Zé e capitaneada pelo Seu Jorge, mestre de obras dos melhores, avançou com uma velocidade que só perdia para a pressa de um público de amigos que não queria esperar muito pela volta. Afinal, naquele tempo, o bairro estava escasso de lugares com boa música, bebida e amigos. Como, aliás, ainda hoje é. Diga-se de passagem, São Cristóvão nunca teve essa vocação musical.

Logo, passamos a discutir todos juntos a cara que teria aquele novo espaço (sim, porque nos sentíamos todos meio donos do pedaço). O bar tinha um nome, que realmente não consigo me lembrar direito. Era um nome meio pomposo e que não tinha nada a ver com os nossos propósitos (acho que era Apollo). Estava difícil decidir por um novo nome. O jeito foi avançar com as obras e deixar pra depois o batismo. Quando decidimos pela cor, o nome apareceu. Então, temos que explicar primeiramente o porquê da cor. O bar era um local sem cor, sem estilo, um design decadente e velho. Pra se ter uma ideia, do lado de dentro do balcão havia umas grades que serviam de assoalhos e que dava aos que serviam uma elevação em relação ao público atendido porque o balcão era alto e volumoso. Era uma coisa antiga. Isso tudo era estranho pra uma turma mais jovem e descolada. Queríamos também que as meninas aparecessem e não somente os bebuns de final de turno. Éramos também um grupo de jovens negros, alguns grandes e fortes outros nem tão negros, nem tão fortes, como eu. Só marmanjos! Isso assustava um pouco os brotinhos, pensávamos. Alguém, que não me lembro direito quem, acho que foi o Bira, o mais velho dos não sei quantos (eu sei) irmãos do Zé, sugeriu com coragem; _Pinta de rosa. Vai chamar a atenção de todos. _ Pensamos que poderia mesmo suavizar o visual e atrair mais gente sem medo. _Mais, caramba, rosa é sacanagem. - Afinal, a cor-de-rosa era uma cor muito feminina e, apesar do pessoal não ter nenhum preconceito, achamos que seria uma cor muito enjoativa. Precisávamos de uma composição. Alguém falou: por que não mistura com preto? Vai contrabalançar. Beleza. Gostamos. Resolveu-se que todo o teto seria pintado de preto, descendo pelas paredes, pelo menos uns 40 centímetros. Daí o próprio Zé decretou: _Vai se chamar Pink Bar. O Bira, que era bom de desenho, bolou o logotipo que foi pintado nas duas paredes laterais do salão em preto sobre o rosa. Resumo da ópera (ou melhor, da obra). A retirada daquele dinossauro lusitano do meio do espaço resultou numa ampla área que não podíamos perder mais. O Zé optou por um balcão mínimo, de alvenaria coberto por uma pedra simples e bonita de mármore. Um balcão slim. Pôs um piso moderninho e o bar comportou umas dez ou doze mesas no máximo. Pouco? Sim. Mas, diante das três ou quatro de antes, pra nós era como um Canecão. O Zé, muito esperto e de bom gosto, conseguiu gastar pouco e deixar o lugar aconchegante com uma luz indireta bem bacana. Cool o bastante, para agradar um público mais exigente e ainda continuava servindo os peões (que estranharam um pouco, mas continuavam com fome) durante o dia com a comida que o valente cozinheiro (que eu não me lembro quem era) preparava, sempre com o auxílio luxuoso do nobre Aécio, nosso amigo de infância.

A reforma deve ter durado um mês ou um pouco mais. Foi rápido, porque o bar tinha que faturar. Enquanto isso, o trio rebuscava seu repertório e ensaiava para uma estréia de gala. Fizemos um pequeno estandarte, de fundo preto (pra sobressair sobre o rosa), tudo combinando. Éramos fashion agora. Precisávamos pensar em tudo.

Chegou o dia da reinauguração do bar do Zé e a inauguração de um novo espaço cultural-musical no pedaço. Todos nós tínhamos muitos amigos por ali. Afinal, nascemos no bairro e já fazíamos música de algum modo. Durante a febre do RockBR dos anos 80, o bairro recebeu uma chuva de bandinhas de rock que se apresentavam nas festas dos clubes, nas casas de amigos e, principalmente, nas festas de rua, como as dos meses do São João. Havia uma galera grande que gostava e que estava por ali meio de bobeira. A novidade é que o espaço seria reservado para a boa MPB e no máximo alguns rocks mais cabeças da safra de bandas brasileiras. Muita gente dessa galera chegava para canjas. Amigos baixistas, guitarristas e bateristas sempre apareciam, menos vocalistas, o que me obrigava a me esgoelar horas. Nosso setlist continha mais de 70 músicas, e o som rolava até a madrugada, entremeada com alguns minutos de música ambiente de primeira.

Estreamos com casa e calçada cheias. As mesas eram todas ocupadas com turmas de vários lugares. Gente que trabalhava ali por perto trazia pessoas de outros bairros; casais, turmas de amigos, as nossas famílias. O pessoal que chegava mais tarde estacionava na rua, em frente ao bar, que era aberto em toda a sua largura e continuava sentado em seus carros ou motos, formando uma pequena massa do lado de fora. Alguns, mais chegados, improvisavam churrascos na frente e consumiam a cerveja do bar. 

Ganhei uma fita K7 de uma amiga de trabalho do disco Pegadas do Zé Renato (cantor), que eu adorava. Levei para o Zé Renato (do bar) e ele também curtiu muito e tocava sempre nos intervalos dos sets. Aquela fitinha marcou também aqueles momentos como uma trilha sonora. Hoje em dia, sempre que ouço o CD, lembro do bar e do Zé (o do bar). Tenho o K7 guardado comigo até hoje.

Costumava passar por lá também durante a semana, quando voltava do trabalho. Ficávamos pensando em novidades para a sexta. Pensando em músicas novas e impactantes. Uma vez, estava chateado com algo que não me lembro. O dia não foi bom mesmo. Quando cheguei, não demorou muito, uma corda do violão arrebentou e enquanto o Luiz trocava por uma outra nova, eu resolvi cantar à capela, somente com a marcação do Mirinho, uma música do Martinho da Vila. Era "Disritmia". Foi um sucesso! Outra vez, resolvemos apresentar "O Caçador" do disco do tênis do Lô Borges. Levávamos algumas coisas bem diferentes e inesperadas, como "Minha Superstar" do Erasmo. A mulherada adorava, porque o refrão romântico dizia: "Ela é minha superstar, mulher de brilho farto, que eu sempre hei de ver brilhar no palco do meu quarto". Isso era pegajoso. Pegava fácil e era bom de cantar.

O Zé adorava algumas coisas e forçava a barra pra gente tocar. Infelizmente, algumas não conseguimos levar, como "Não se apague essa noite", também do Lô, que ele adorava e cantava como se estivesse ajoelhado à frente da amada, bem dramático: "Por favor não se apague essa noite, você tem que provar do meu sangue". 

Jorginho, Luiz, o violão, Zé Renato e eu acampando.
Mirinho deu peti e foi embora.
No repertório, uma seleção mais que eclética: O pessoal do Clube da Esquina, começando pelo Milton, Beto Guedes, Lô Borges, Flávio. O Rei Roberto e seu amigo Erasmo. Tim Maia, Hyldon, Cassia Eller, Chico Buarque, Djavan (o nosso preferido), Caetano, Legião, João Bosco, Gonzaguinha, Kid Abelha, Paralamas, Ivan Lins, Barão, Luiz Melodia, Martinho da Vila, Bossa Nova, Gilberto Gil etc. Gostávamos de tocar muita coisa tipo lado B para sair um pouco do comum. Para os mais novos, lado B, remete ao lado “menos importante” do disco de vinil – LP que há anos atrás reinava absoluto.

Essa experiência me marcou demais. Foi uma das coisas que fiz na vida que mais me deu prazer. Pelo menos dois anos cantando publicamente e me descobrindo capaz de fazê-lo. E mais, a galera gostava e eu me descobria ali um cantor profissional, porque era num bar que recebia um público que pagava, embora não cobrássemos do Zé (se cobrássemos não duraria dois anos). Formamos uma verdadeira confraria, irmanados sob um único objetivo: a devoção pela música e pela amizade.

Em pouco tempo criamos um point mais que bem sucedido pela popularidade. O som rolava todas as sextas às 8 da noite e ía até onde aguentavam as nossas forças e nosso tesão: quase sempre às 2h da manhã e durou de 1993 a 1994. Atualmente, em época de super exposição, sinto não ter sequer uma fotografia da gente no bar ou uma fitinha cassete que seja. Ficou somente na memória de quem viveu aqueles momentos. Foi um grande barato e que devemos ao empreendedorismo do Zé Renato, meu grande amigo que se foi e a quem dedico a música “Clube da Esquina 2” que ele gostava muito e que me remete a um desejo de renovação, porquanto, apesar do tempo não parar, os sonhos nunca envelhecem. Perdoem-me o lugar comum, mais é a mais pura verdade.




Clube da Esquina 2




Não se apague esta noite - Lo Borges






Serviço:

Pink Bar
Rua São Januário, 311/loja - São Cristóvão
Proprietário: José Renato Farias
Happy Hour: MPB ao vivo
Assis – Voz
Luiz Claudio – Violão
Mirinho – Percussão
Canjas dos amigos
Todas as sextas-feiras a partir das 20h.
Couvert opcional (sempre doado ao bar)
Cerveja gelada, bebidas diversas
Petiscos variados bem servidos







domingo, 1 de dezembro de 2013

O que faz de uma música um clássico: Clube da Esquina 2

A história da música popular brasileira está recheada de casos que contam o surgimento de obras que vieram a se tornar grandes clássicos. Algumas já nasceram assim, enquanto outras contaram com algumas conjunções que colaboraram para o resultado final. No samba, por exemplo, as histórias das parcerias e dos temas escolhidos, são deliciosas. Tanto a música quanto a história que a conta fazem parte do produto que o consumidor vai curtir como um grande conjunto da obra. 

Outro dia, de manhã, a caminho do trabalho, ouvi no rádio “Clube da Esquina 2” cantada pelo Milton Nascimento e me lembrei de sua história, que graças a sua publicação em um livro, pude tomar conhecimento. O livro é “Os sonhos não envelhecem – Histórias do Clube da Esquina” de Marcio Borges (já comentado por aqui).

Bem, essa música em questão é cercada de fatos e referências especialíssimas. E vou começar a história do porquê dessa composição ser um clássico desde o começo.

Essa música foi composta, inicialmente, por Milton Nascimento e Lô Borges e era somente instrumental. Não tinha letra. Foi intitulada com o nome do movimento musical mineiro, já reconhecidamente importante na época. Era “2”, pois ambos já haviam composto “Clube da esquina”, gravada no disco “Milton” de 1970. Este disco registrou entre outras, “Para Lennon & McCartney” e já falei um pouco dele num outro post. Portanto, a segunda música em homenagem ao clube já tinha uma história no seu próprio nome.

Clube da Esquina 2
A versão (instrumental) da música foi gravada no LP “Clube da Esquina”, de 1972, disco antológico (talvez o mais importante da carreira do Bituca) e que teve sua autoria dividida com Lô, então um jovem de apenas 18 anos. Sem contar que a música por si só é muito boa, só essa história já seria suficiente para torná-la um clássico: uma música, cujo título é o mesmo de um dos mais cultuados discos da MPB, no qual foi gravada. 

Só que a história não acaba aqui. A história começa aqui e é cheia de ingredientes hilários e marcantes tanto pelo seu tempo, quanto pelos personagens envolvidos. Marcio Borges nos conta em suas histórias do Clube da Esquina no seu livro supracitado, que ao final dos anos 1970, estava na noite da zona sul, no bar Diagonal do Baixo Leblon, no Rio, quando encontrou com Nana Caymmi, que ao vê-lo, bradou em alto e bom som, indagando-o o porquê de o moço não escrever uma letra para o “Clube da esquina 2”. Disse que achava a música linda e que queria gravá-la, mas a música não tinha letra. A primogênita de Dorival estava determinada a convencê-lo. Vale transcrever a narrativa do autor, porque relatos sobre Nana Caymmi são sempre imperdíveis: 


“- Ô seu porra, porque você não mete uma letra no “Clube da Esquina 2”? – Foi dizendo. (Esse era o instrumental criado por Lô e Bituca tempos atrás, no qual todos nós queríamos pôr letra, mas os dois nunca deixavam (“senão deixava de ser instrumental”). – Eu quero gravar essa merda mas sem letra não dá, né, porra.

Nana boca pesada. Pois bem. Naquela noite no Diagonal, Nana me convenceu a colocar letra, mesmo sem o conhecimento daqueles dois panacas (ela não disse panacas, evidentemente), pois afinal eu não era um bobo medroso (ela não disse bobo medroso) e ela própria mostraria a droga da letra (não disse droga), era só colocar aquela pinóia (nem pinóia) na mão dela e os dois que se... (claro que disse o termo).” (Borges, 1997)


Marcio foi pra casa e obedeceu ao pedido, ou melhor, à ordem e escreveu a letra à revelia dos irmãos branco e preto.

“Porque se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
Nem lembra se olhou pra trás
Ao primeiro passo, aço, aço, aço...”


Nana Caymmi, 1979
Em 1979 a cantora gravou em seu disco. Nesse mesmo ano, depois de 7 anos sem gravar, Lô Borges lança o LP “A via láctea”, para muitos seu principal disco solo. Nele, Lô gravou não somente “Clube da Esquina 2” (afinal, também ele pôde cantá-la), como outras tantas que o afirmaram como grande expoente do movimento do Clube como da própria música popular moderna feita em Minas Gerais e que chegava nos grandes centros do Brasil, como Rio e São Paulo com grande impacto. Não chegava a ser popular, longe disso. Mas, era bem recebida pela crítica especializada e por músicos importantes e, principalmente, por um público jovem descolado, que ainda acampava e cantava aquelas músicas ao som das violas, ao redor de fogueiras, sob a inspiração hippie, ainda um pouco presente. Era o tempo da abertura política e esses jovens acreditavam numa reviravolta político-social, numa nova época de liberdade. As músicas falavam fundo junto a essas aspirações.

A Via-Láctea, 1979
A canção, desde então, se tornou clássico pela segunda vez. Ela é um clássico instrumental no disco de 1972, de Milton em parceria com Lô, e também com letra, nos discos de Nana e de Lô, ambos de 1979. Mais tarde, foi gravada por vários artistas importantes.

Resumo da ópera: se não fosse a obstinada e mandona Nana, talvez a música fosse até hoje um instrumental que somente alguns curtissem, porquanto, embora linda, nem todos gostam de música instrumental. 

A história de uma música passa por isso que vimos: o disco no qual foi gravada; o tempo em que foi gravada ou composta; os artistas que a compuseram entre outras coisas.

Se fosse o Zé das Couves que pedisse ao poeta uma letra; se fosse outro músico que a escrevesse; se fosse outra época, enfim... A Nana é Caymmi, o Marcio é Borges, os anos eram os 70, os primeiros autores eram nada mais nada menos que Lô e Bituca. Não tinha como dar errado. Viva a Nana!


Clube da Esquina 2 c/ Nana Caymmi




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BORGES, Marcio. Os Sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da Esquina. 2ªed. São Paulo: Geração Editorial, 1996.


domingo, 24 de novembro de 2013

Permanência

                                      

Não vá embora

                                       
Nem nunca, nem agora.



                                       
Se até o passado ficou!...



Cida Barreiros


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sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A música de época e a primeira geração do samba

Os primeiros tempos da música popular no Brasil foram marcados por diversos ritmos que antecederam ao samba e alguns que até o acompanharam, como o choro, por exemplo. Segundo Severiano, um dos gêneros musicais mais remotos é a modinha, surgida ainda no século XVII, cuja obra de Domingos Caldas Barbosa, seu grande compositor e divulgador, “pode ser considerada o marco zero da música popular brasileira”. Outro compositor de destaque da modinha foi o compositor, violonista e cavaquinista, Joaquim Manoel da Câmara, já no início dos 1800. Das últimas décadas do século XVIII, o lundu “surgiu da fusão de elementos musicais de origens branca e negra, tornando-se o primeiro gênero afro-brasileiro da canção popular. (...) Situa-se portanto o lundu nas raízes de formação de nossos gêneros afros, processo que culminaria com a criação do samba” (Severiano: 2008; p. 19).

Outros remetem à cultura européia, como a valsa e a quadrilha, trazidas pela Família Real portuguesa no início do século XIX. Era o início das festas e das danças de salão de grande aceitação e sucesso, principalmente pela elite. Outro gênero vindo da Europa, a polca surgiu na Boêmia nos Países Baixos por volta de 1830, tendo chegado ao Rio de Janeiro quatorze anos depois de grande sucesso e executada por toda a cidade, por vezes se misturava ao lundu, dando surgimento a outros ritmos musicais no Rio de Janeiro. Na década de 1870, nascem três outros gêneros: o tango brasileiro, o maxixe e o choro. “Parentes próximos, os três gêneros teriam em comum o ritmo binário e a utilização da síncope afro-brasileira, além da presença da polca em sua gênese” (Idem: 2008; p. 28). 

É nesse contexto musical que surge a chamada primeira geração do samba que é composta por filhos e amigos das Tias baianas. Donga, Pixinguinha e João da Baiana, chamados por Martinho da Vila de a santíssima trindade da música popular brasileira, formam esse primeiro grupo que frequentava as casas das baianas, principalmente a de Tia Ciata que promovia rodas de samba e outros ritmos de origens africanas. São dessa época, as músicas de estilo mais rural e de influências mais africana, como o samba tocado com prato e faca (especialidade de João da Baiana), os sambas de partido-alto, as chulas, os maxixes, entre outros ritmos que foram trazidos pelos negros da Bahia. Músicos como Heitor dos Prazeres, Caninha e Sinhô, entre outros, faziam parte dessa geração que marcou a fase inicial até o final dos anos 1920. Sinhô, aliás, é considerado o principal compositor popular dessa década. Sistematizador do samba, sua influência e sua obra propiciaram a grande mudança que estava por vir nos anos finais dessa década.

Caninha, José Luiz de Moraes, nascido no Rio de Janeiro em 06 de julho de 1883 e falecido na mesma cidade em 16 de junho de 1961, é considerado o mais antigo dos primeiros tempos. Recebeu o apelido ainda na infância por vender rolinhos de cana-de-açúcar nos arredores da Central do Brasil. Tornou-se conhecido de um público maior com o seu maxixe Gripe espanhola, de 1918. Principal rival de Sinhô nos festivais da Festa da Penha era também um tradicional frequentador dos ranchos. Participou de vários, entre eles, Dois de Ouro, Reis de Ouro, Rosa Branca, União 28 dos Amores, Recreio das Flores. Entre outras composições deste autor, se destacam os sucessos Até parece coisa feita de 1919, Ninguém escapa ao feitiço e Quem vem atrás fecha a porta, de 1920 e Essa nega qué mi dá, sua primeira composição gravada, de 1921.

Outro importante ícone da história do samba é Heitor dos Prazeres. Músico e pintor, é dele a expressão “Pequena África” (citado em Moura, 1983). Parceiro de grandes nomes da música como Noel Rosa na marcha carnavalesca de grande sucesso Pierrô apaixonado: “Um Pierrô apaixonado/ que vivia só cantando/ por causa de uma Colombina/ acabou chorando/ acabou chorando...” e Herivelto Martins Lá em Mangueira: “Lá em Mangueira/ aprendi a sapatear/ lá em Mangueira/ é que o samba tem seu lugar...” Também rivalizou com Sinhô, acusando-o de ter se apropriado de algumas composições como, por exemplo, Gosto que me enrosco, grande sucesso do “Rei do Samba”.

Pixinguinha, João da baiana e Donga formam um trio-ícone da história inicial do samba. O primeiro, cujo nome de batismo é Alfredo da Rocha Vianna Filho, ligado mais ao gênero choro, foi de grande importância por sua genialidade e erudição musical. Até hoje, considerado um dos maiores compositores da música brasileira. Seu Carinhoso de 1917, letrado por Braguinha (João de Barro) em 1937, é cantado e cantarolado por todas as gerações de brasileiros graças ao mega-sucesso na voz de Orlando Silva, na gravação do mesmo ano da letra. Instrumentista genial, influenciou os regionais que apareceriam em profusão. Um dos nomes mais constante é o do flautista Benedito Lacerda, com o qual formou dupla. Jacob do Bandolim é um exemplo de gênio-discípulo do grande mestre. Dentre os sucessos deixados pelo músico estão Os Oito Batutas (c/Benedito Lacerda), tango, 1919; Patrão, prenda seu gado (c/Donga e João da Baiana), chula raiada, 1931; Conversa de crioulo (c/Donga e João da Baiana), samba de partido-alto, 1931; Rosa (c/Otávio de Sousa), valsa-canção, 1937; Um a zero (c/Benedito Lacerda), choro, 1949; Lamento (c/Vinícius de Morais), choro, 1962. Todas essas músicas e muitas outras marcam a sua trajetória.

João da Baiana (João Machado Guedes), filho de baianos, foi um grande ritmista, tendo desenvolvido este talento desde pequeno junto à comunidade baiana da qual fazia parte. Sua primeira composição é de 1923: Pelo amor da mulata. Outras composições marcantes são Cabide de molambo, Patrão, prenda seu gado, Batuque na cozinha

Por último, Donga (Ernesto dos Santos) que era filho da baiana Amélia e, como João da baiana, também foi criado em meio às festas e tradições da citada comunidade. Mais que uma história de repertório que, aliás, não foi muito extensa, a importância de Donga está associada à modernização do samba, cuja profissionalização tomou impulso a partir do registro e da gravação de Pelo telefone. Fez parte junto com Pixinguinha dos Oito Batutas, tendo excursionado para Argentina e Europa, depois da consagração carioca. Outras composições de Donga: Bambabambu, Passarinho bateu asas, Macumba de Oxossi (Diniz: 2006). 

José Barbosa da Silva é, de todos da chamada primeira geração, o que mais sucesso fez na época. Seu nome era reverenciado nas rodas e festas das várias classes sociais. Tanto nos salões elegantes da sociedade carioca, quanto nos locais da boemia sua presença era certeza de animação. Sinhô, como era conhecido, embora tenha morrido cedo, em 1930, era dono de uma obra vasta e de grande sucesso. Vaidoso, era o rei do maxixe e do samba, tanto que o apelido de “Rei do Samba” foi inventado por ele mesmo numa auto-homenagem. É dele Jura (seu maior clássico, gravado por Mário Reis que foi seu aluno de violão), Gosto que me enrosco (reivindicada por Heitor dos Prazeres, como já citado), Amar a uma só mulher, Que vale a nota sem o carinho da mulher.


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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Zé Renato e Claudio Nucci, uma celebração da amizade!

Na última quarta-feira, 25 de setembro, fui assistir ao show da dupla, a qual comentei por ocasião da postagem "Pelo sim pelo não". Estava ansioso por essa oportunidade de vê-los juntos, pois ainda não tivera essa chance. Assistimos Rita e eu, juntamente com nossos amigos, Marcio e Eliana ao show do Zé Renato trio (Rômulo Gomes, baixo e vocal e Tuty Moreno, bateria e, é claro, Zé no violão e voz), alguns meses atrás, e foi muitíssimo bom. Lavei a alma. Porém, movido pelos últimos acontecimentos à respeito de um "resgate" que cito em outro post "Enquanto isso..." e todos os seus desdobramentos pelos comentários ( incluindo o do próprio autor), pelos vídeos do meu canal no Youtube, descobertos pelo poeta e parceiro da dupla Juca Filho etc., estava especialmente afim de assisti-los ao vivo. Pois bem, chegada a oportunidade, fomos Rita e eu para a porta do pequeno, mas charmoso e aconchegante Teatro I do Sesc da Tijuca. O show começava às 20h e o espaço lotou fácil. 

É engraçado como conseguimos nos surpreender com o resultado daquilo que já  temos certeza de como será. Sabia que seria bom, mas de cara, a dupla inicia o espetáculo com o nível lá em cima. Digo, níveis de qualidade porque eles iniciam com "Tupete", música composta pela dupla para o repertório da Banda Zil (da qual ainda devo falar por aqui). Cabe dizer que a música não tem letra e é praticamente toda vocalizada. É uma música difícil de tocar e de cantar. Outra dificuldade, para quem conhece bem a versão gravada pela banda é que nela, sete músicos participam com seus instrumentos e vozes. Sim, porque, embora na Banda Zil a dupla fosse responsável pelas vozes e pelos vocais principais, quase todos, ou todos, também contribuíam no canto. Nessa música, por exemplo, em uma das últimas partes, vários deles participam do vocalize, bem ao estilo Boca Livre. Então, assim que ouvi os primeiros acordes, pensei: vai ser f... E fiquei curioso e torcendo por eles. A dupla com seus violões e arranjos fazia parecer que eram quatro. E eram: duas vozes e dois violões. Mas tinha hora que parecia haver percussão, baixo etc. O Claudio me surpreendeu também com seu violão. Havia muito tempo que não o assistia e pude perceber como está em forma também, como o Zé. No início dessa música, existe uma série de acordes que serve de introdução, mas que continua a medida que as vozes entram. O problema é que sua métrica não serve necessariamente para o canto. De modo que tocar esses acordes e cantar ao mesmo tempo, mal comparando, lembra um pouco o João Gilberto, cuja voz vai para um lado e o violão para o outro. O Claudio deu uma de João Gilberto e, com muita técnica, tocava uma coisa e cantava outra. O detalhe é que ambas as coisas eram complexas. Fantástico!

Tentarei ser mais sintético, pois minha prolixidade adora parágrafos enormes. Se na primeira já resultou em toda essa história, imagine quando chegarmos ao final desse show...

Não consigo me lembrar de todo setlist, tampouco a ordem, mas me lembro que ele abriu com a que acabo de mencionar e fechou no bis com "Quem tem a viola" (Zé Renato, Xico Chaves, Cláudio Nucci e Juca Filho) . Como o show começou em alto nível, a segunda, uma das mais belas, na minha humilde opinião, foi "Atravessando a cidade" letra e música de autoria de Juca Filho. Uma canção do álbum que mencionei "Pelo sim pelo não", clássico trabalho e único registrado pela dupla. Essa música apresenta uma série de atributos que a tornam o que é. Sua tonalidade e suas notas possibilitam que o canto dos dois evolua limpo, sereno, suave. Enquanto escrevo, ouço-a para me inspirar, tal a importância de sua audição. Possibilita também o canto em duas vozes, típicas das duplas folks ou caipiras. 

Outro ponto alto e que me surpreendeu, foi a escolha por uma composição de Caetano Veloso: "Cá ja", do seu disco "Muito", de 1978. Acertaram em cheio. Adoro essa música e ela ficou muito boa nas suas vozes. Caetano adoraria, com certeza ("ou não"). Ou sim, senhor! Linda, linda.

Cantaram ainda "A Hora e vez", dos dois com Ronaldo Bastos, Pelo sim pelo não", da dupla com Juca Filho e "Papo de passarim" de Zé Renato e Xico Xaves. Todas do disco de 1985 da dupla. Do álbum de estréia do Boca cantaram "Toada" (Zé Renato, Claudio Nucci e Juca Filho), devidamente acompanha pela platéia (e não poderia deixar deixar de ser assim, se não perderia a graça); a doce e romântica  "Diana" de Toninho Horta e Fernando Brant, a já citada "Quem tem a viola" e "Mistérios", de Maurício Maestro e Joyce. 

Ainda mandaram ver com "Lamento Sertanejo": melodia de Dominguinhos com letra de Gilberto Gil, emocionando a todos, na homenagem ao querido músico da sanfona, falecido há pouco tempo; "Matança", de Jatobá, um protesto ecológico, gravado por Xangai e Geraldo Azevedo no antológico "Cantoria1" ( Elomar, Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai) e "Blackbird", de um "grupinho", que segundo os dois estavam dando uma força: The Beatles. Ainda lembraram de algumas canções antigas e cada um cantou uma nova, O Zé de parceria com a Joyce e o Claudio com a Ana Terra, pra não ficar pra trás. Pouco, né?

No meio de tudo, ainda levaram "Quero, Quero", de Claudio Nucci e Mauro Assumpção, "Acontecência", de Nucci e Juca Filho e talvez, a única daquela fita K7, já tão citada e famosa por aqui pelo blog, "Sapato Velho", de Mu Carvalho (A cor do som), Claudio Nucci e Paulinho Tapajós. Disse talvez, porque tenho a impressão do Nucci ter cantado a linda "Tiça", também desse trabalho e de sua autoria. Acho que cantou sim. Foi tão emocionante que acabei por me deixar levar na viagem.

No final, fugi do meu estilo, quebrando o meu protocolo. Pedi autógrafos, que das letras não consigo decifrar, só sei que são suas assinaturas. Bem, os caras já cantam pra caramba... Tirei fotos que não sairam lá essas coisas. A do Zé saiu toda tremida. A máquina cismou de falhar na hora errada. Dei um gostoso abraço no Claudio que se lembrou do Chico do Blog do Chico. Foi legal.

O melhor de tudo foi poder apreender a mística da dupla e curtir a harmonia que rola quando os dois se apresentam. São velhos amigos (dos tempos ainda da adolescência), se formaram juntos. Foi muito bacana reparar no olhar de um para o outro, como querendo dizer é agora, é sua, manda ver. Reparar no olhar carinhoso mútuo como querendo dizer (e muito certamente): "estamos aqui novamente, como nos velhos tempos e como sempre será, porque somos irmãos, porque somos amigos". Eu estava bem perto, eu vi!




sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Um, dois, três anos de blog do chico




42.737 visualizações
Há exatamente três anos decidi criar esse espaço, a partir da dica e incentivo do Marcelo Brum (geólogo, amigo do trabalho) que, mostrando o blog dele para mim, perguntou-me porque não fazer um também. 

O tempo e as postagens com seus inúmeros comentários e curtições mostraram que a decisão foi super acertada. Tem sido, como já falei muitas vezes, muito prazeroso poder usar esse espaço bem pessoal para poder me expressar quanto aos mais variados assuntos. Tenho feito retrospectos anuais nas postagens comemorativas como em Blog do Chico: um ano de vida! e Dois anos de Blog do Chico nos quais agradeço aos amigos que me seguem e que comentam por aqui. Àqueles que me sugerem temas direta ou indiretamente. E posso afirmar que isso tem acontecido bastante, o que comprova a boa interação do blog com o seu público. É bem verdade que ainda tenho muita coisa que escrever, mas não consigo dar conta como gostaria. Se parar pra pensar, posso lembrar de pelo menos cinco ou seis temas que resultariam em no mínimo um artigo para cada um. Sem contar os temas que exigem vários artigos que atendem a várias possibilidades de entendimento. Exemplo do samba, tema sobre o qual produzi vários textos a partir da minha monografia.

Que bom que chegamos aqui. Continuo contando com a pequena ajuda de meus amigos, como na música dos Beatles. Aliás, preciso e quero escrever sobre a experiência de conhecer e curtir a banda de Liverpool. 

Então é isso, ao invés de somente falar do passado, quero falar do futuro, até como um compromisso revelado, em minhas próximas postagens. Quero e pretendo escrever sobre bossa-nova, Tom Jobimmúsica e tempo, filmes e livros que marcaram, shows que assisti como o da última quarta-feira da dupla Zé Renato e Claudio Nucci. Quero falar mais sobre política, sociedade, história etc.

Fica aqui meu abraço a todos os amigos que acompanham esse espaço e meu desejo que continuem participando e colaborando para que este seja sempre um local virtual de encontro. De bons encontros.


Chico Furriel

sábado, 14 de setembro de 2013

O mito da democracia racial e a mídia

Uma breve introdução histórica

A história do Negro no Brasil inicia-se quase que simultaneamente ao descobrimento deste país. Já nas primeiras décadas do século XVI, os negros escravizados no continente africano eram trazidos para o ciclo econômico da cana-de-açúcar. “A partir de 1549, intensificou-se o tráfico negreiro para estas regiões, principalmente em razão dessa florescente cultura agrícola. Em 1559, o tráfico foi legalizado por iniciativa de um decreto do rei D. Sebastião, pelo qual ficava autorizada a captura de negros na África para o trabalho em território brasileiro”(ver ref. 1).

Segundo Nei Lopes(2), importante pesquisador e músico ligado às lutas pelos direitos de igualdade dos negros na sociedade brasileira, o deslocamento de grande contingente de negros acompanhou as mudanças desses ciclos econômicos. Primeiro com a lavoura da cana-de-açúcar, no nordeste, depois, já no século XVIII, com o ciclo do ouro, na Região das Minas e finalmente, com o período do café, no século XIX, no sudeste do país, sobretudo na região do Vale do Paraíba.

Na segunda metade do século XIX, vários fatores como a crise do café, a partir de 1860: a grande seca do sertão nordestino nos anos de 1877 à 1879; a abolição do trabalho escravo em 1888 e o término a Guerra de Canudos em 1897 contribuíram para que um grande número de negros e mestiços migrasse para as metrópoles, principalmente, a cidade do Rio de Janeiro, então capital do Império e da República que estava por vir, em busca de trabalho e de sobrevivência. Além disso, “entre 1871 e 1920, o Brasil recebeu 3,3 milhões de imigrantes, provenientes da Alemanha, Itália, Portugal, Ucrânia e Polônia”(3), para substituir a mão-de-obra escrava, e também para, segundo uma política “racista” do Governo do país e de grande parte das elites, embranquecer a população.

No caso do Rio de Janeiro, com a chegada da República e o desejo de dar à paisagem da cidade uma aparência européia, inicia-se uma política de embelezamento e racionalidade que consiste em abrir novas e largas avenidas, derrubadas de prédios velhos, os chamados cortiços, limpeza e saneamento das ruas do Centro. Desse modo, a população pobre, de grande maioria negra é obrigada a se mudar para as periferias, como as das regiões da Praça Onze e da Cidade Nova, como também a ocuparem os morros próximos, como os da Conceição, no bairro da Saúde e da Providência (morro da Favela), na Gamboa. A política urbanizadora do Prefeito Pereira Passos, inicia-se em 1902 e segue até 1906, a qual foi conhecida popularmente por “Bota abaixo”. Começa aí a história da “cidade partida”.(4)


Democracia Racial?

Apesar das dificuldades e extremas diferenças entre os vários níveis sociais, a convivência era uma real possibilidade. A periferia, nas primeiras décadas do século XX não era tão distante assim do centro da cidade e a chamada classe média da época convivia quase misturada aos mais pobres da cidade. Com a chegada dos anos 1930 e o início da “Era Vargas”, com sua proposta de modernização do país, a sociedade representada, sobretudo, por sua intelectualidade passa a pensar o Brasil, sua cara, sua gente. O conceito de brasilidade passa a ser perseguido e discutido. Nesse período é que o elemento negro ganha força. O samba passa a ser a música que mais reflete a nossa gente, o governo do Estado Novo passa, inclusive, a subvencionar os desfiles das novíssimas Escolas de Samba, incentivando os temas históricos, de cunho nacionalista. 

Nesse período, teses como a de Gilberto Freire ganha força. “O ideal da miscigenação adquire nova roupagem, segundo Martiniano J. Silva , com a obra "Casa Grande e Senzala", escrita pelo historiador e sociólogo Gilberto Freyre, passando a ser vista como mecanismo de um processo, o qual tem como fim a democracia racial. Segundo Clóvis Moura, Gilberto Freyre caracterizou a escravidão no Brasil como composta de senhores bons e escravos submissos. O mito do bom senhor de Freyre é uma tentativa no sentido de interpretar as contradições do escravismo como simples episódio sem importância, e que não teria o poder de desfazer a harmonia entre exploradores e explorados durante aquele período”(5).

“O morro não tem vez/ E o que ele fez já foi demais/ Mas olhem bem vocês/ Quando derem vez ao morro/ Toda cidade vai cantar”. Essas estrofes da música de Vinícius de Moraes e Tom Jobim de 1963, “O morro não tem vez”, denunciam que a voz do morro, daqueles compositores pobres e negros que criaram o “ritmo genuinamente brasileiro”, está esquecida e que esse mesmo contingente negro que teria atuado como o principal agente da formação de uma musicalidade respeitada internacionalmente, está sem vez. Essa denuncia evidencia o que a história da música brasileira conta como que, depois de um período áureo dos anos 1920 aos 1940, o samba e os seus artífices perdem valor na então nova indústria cultural. 

Quando tudo ainda estava em formação, a contribuição e a participação direta dos compositores e cantores negros foi fundamenal e aceita. Porém, a medida que uma classe média, formada por maioria branca, aprende a fazer samba, os compositores, ditos espontâneos começam a perder espaço na indústria cultural da época: gravadoras, rádios e teatros de variedades. “Noel Rosa, por exemplo, que começou a compor e a gravar sambas em 1930, quando morreu, em 1937 tinha 140 músicas gravadas. Cartola, que em 1928 levou à cera o seu primeiro samba, quando Noel morreu havia gravado apenas 9 sambas”(6). O texto continua afirmando ser compreensível que isso houvesse ocorrido: como um compositor simples, semi-analfabeto, sem qualquer articulação junto aos produtores culturais, “poderia concorrer com o doutor Ary Barroso, advogado, com o acadêmico de medicina, Noel Rosa, ou com o bacharel em letras Lamartine Babo?”(7)

Cartola, por exemplo, considerado pela crítica especializada como um dos maiores, se não o maior poeta do samba, nos anos 1940 caiu no ostracismo e foi encontrado após alguns anos lavando carros e trabalhando como porteiro em um edifício em Ipanema. Somente nos anos 1960 o samba e sua importância é resgatado para o bem da diversidade.


O novo mito da democracia racial e a mídia

O fotógrafo Januário Garcia(8), um dos principais ativistas dos direitos pela igualdade dos negros na sociedade brasileira, afirma em seu livro “25 anos do Movimento Negro no Brasil: “é por isso que reafirmo que nossos livros é que vão contar nossa História, porque nossa revolução, com certeza, não será televisionada.”

Januário está coberto de razão. Com a experiência de quem luta há tanto tempo pelo espaço democrático ao qual todos tem direito, como reza a constituição de um Estado democrático de direito, sabe que infelizmente, na prática esses direitos não são respeitados e aqueles que sofrem maiores preconceitos, como no caso da população negra, não conseguem espaço para mostrarem seu valor e para crescerem na sociedade em iguais condições.

Nenhum tipo de veículo de comunicão tem o poder comparável ao da televisão. Com a industrialização do país e a formação de uma sociedade de consumo, a TV a partir dos anos 1950 começa a tomar para si o poder da formação de uma opinião pública. O professor Dennis de Oliveira(9) da USP, em artigo da web cita o sociólogo Otávio Ianni que chama a mídia de “príncipe eletrônico”, referência ao “príncipe”, de Maquiavel, que seria competente em analisar as condições objetivas dadas (fortuna) para fazer valer a sua vontade (virtu). Ianni afirma que “a globalização, por exemplo, ocorre fundamentalmente pela circulação mundial de símbolos nas redes midiáticas, muito mais que pelas possibilidades de circulação de pessoas. Assim, a mídia não só exerce sua hegemonia ao apresentar determinadas posições e visões de mundo como dominantes, mas também por construir um cenário de tal forma que as possibilidades de exercício da política se restringem a ações que não contestem a ordem estabelecida”. Desse modo, a TV será sempre a salvaguarda dos símbolos que o sistema político defende. 

No documentário “A negação do Brasil” de 2000, o diretor Joel Zito Araújo faz um retrospecto da história das telenovelas no Brasil e aos papeis atribuídos aos atores negros. Os personagens são apresentados de forma estereotipada e negativa. O autor denuncia essa prática negativa, escondida sob o mito da democracia racial, e faz um manifesto pela inclusão positiva do negro nas imagens televisivas do país. 

O documentário pontua os estereótipos bem conhecidos como o de “mamãe Dolores”, interpretada por Isaura Garcia em o “Direito d Nascer”, de 1964-1065, um dramalhão de grande sucesso, no qual transparece um ideário da “grande mãe”, modelo norte-americano, visto em vários filmes de Hollywood. A atriz Isaura Garcia morreu na pobreza e esquecida pelo público. 

Em outro momento, mostra um dos grandes disparates da TV sobre o tema racial, a novela “A Cabana do Pai Tomáz”, de 1969, na qual o ator branco, Sergio Cardoso interpreta o personagem título Pai Tomáz, “cedendo a exigência dos patrocinadores. Com esta telenovela foi inaugurada na televisão brasileira o blackface, muito comum no início do cinema americano, onde os atores brancos eram pintados de preto, encarnando uma visão, uma imagem, pretensamente positiva que os brancos poderiam ter dos negros: o negro de alma branca, bondoso, serviçal e fiel. O blackface só lembra todo tempo ao espectador que a alma branca esta sob a pele negra (10)”

Nos anos 1970 prevaleceram as novelas cujas histórias apresentavam os negros em papeis subalternos e as do período escravista, mostrando os estereótipos da versão oficial de que a libertação dos escravos foi uma dádiva dos brancos. Nesse período as novelas “Escrava Isaura” e “Sinhá Moça”. “Entre 1980 e 1990, de acordo com Zito, houve algumas mudanças, em destaque, as representadas pela telenovela Corpo a Corpo, onde aparece uma personagem vítima de preconceito racial, Sonia, vivida pela atriz Zezé Motta. Estas duas décadas são consideradas pelo autor como um período de ascensão do negro na telenovela brasileira. No entanto, teria permanecido no mesmo veículo a construção de uma identidade de “branquitude” na sociedade brasileira, onde as imagens dominantes, em especial dos subtextos, reforçam o elogio dos traços ‘brancos’ como o ideal de beleza dos brasileiros”(11)

“Ao exaltar determinadas qualidades da população afrodescendente, o que a mídia faz não é avalizar a luta contra o racismo, mas demonstrar que é possível a superação do racismo nos marcos da sociedade liberal – mais que isto, que a sociedade liberal é a única forma de se pensar a superação do racismo. Por isto, ao lado da divulgação de dados que mostram as desigualdades entre brancos e negros, o que evidencia o caráter racista no Brasil, a mídia se posiciona contra as ações afirmativas e qualquer política específica de combate ao racismo. A neodemocracia racial midiática reconhece o racismo mas despolitiza-o e retira a sua componente estrutural, uma vez que é intocável o contrato social estabelecido dentro dos marcos da sociedade liberal.”(12)


(Este artigo foi feito em parceria com minha colega de turma Isabel Cristina Correia para uma disciplina transversal sobre comunicação e mídia)
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(1) Disponível em : http://ww1.universia.com.br/materia/materia.jsp?id=2852
(2) LOPES, Nei. Introção. In: O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical: partido alto, calango, chula e outras cantorias. Rio de Janeiro: Pallas, 1992.
(3) Disponível em: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/historia-da-populacao-brasileira/brasil-um-pais-de-migrantes.php
(4) Termo criado por Zuenir Ventura em seu livro “Cidade Partida” de 1994.
(5) Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Democracia_racial_no_Brasil
(6) e (7) SILVA, Marília Trindade Barboza da (Coord.). 500 anos, da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: MIS Editorial, 2001.
(8) GARCIA, Januário. 25 anos 1980-2005: movimento negro no Brasil = 25 years of the black movement in Brazil / Concepção, organização e fotografia Januário Garcia. – 2. ed. – Brasília, DF: Fundação Cultural Palmares, 2008.
(9) Disponível em: http://www.orunmila.org.br/blog/?p=72
(9) Disponível em: http://www.uff.br/mestcii/eliana1.htm
(10) Disponível em: http://www.uff.br/mestcii/eliana1.htm
(11) Disponível em: http://www.orunmila.org.br/blog/?p=72
[1] Disponível em: http://www.uff.br/mestcii/eliana1.htm
[1] Disponível em: http://www.orunmila.org.br/blog/?p=72

terça-feira, 3 de setembro de 2013

A Época de Ouro da Música Popular Brasileira



Por “Época de Ouro” da música brasileira, entende-se o período iniciado com a revolução da turma do Estácio, já falado neste trabalho, passando por Noel Rosa e outros compositores e artistas que apareceriam a partir dos anos 1930. Jairo Severiano considera o período 1929-1945 como tempo delimitador dessa Era que vê surgir um grande número de artistas talentosos de uma mesma geração, a geração de 30 (Severiano: 2008; pp. 107-111).

Participaram do início dessa geração compositores como Ary Barroso (1903-1964), Lamartine Babo (1904-1963). O primeiro, dedicado ao samba, foi também radialista e apresentador de programa de auditório de grande respeito e importância. Mineiro, mudou-se para o Rio de janeiro aos 18 anos e ali se radicou. Autor dos clássicos Aquarela do Brasil e Na Baixa do Sapateiro, foi um dos principais autores do gênero samba exaltação. O segundo, surgido também no final dos anos 1920 e, juntamente a João de Barro, se tornaria o fixador do gênero marcha. João de Barro ou Braguinha (Carlos Alberto Ferreira Braga, 1907-2006). Foi um dos compositores que mais se destacaram por sua grande produção, principalmente nas marchas carnavalescas. Como Noel, também integrou o Bando de Tangarás, iniciando em 1929 sua carreira (Idem: 2008; pp. 107-111).

Outros artistas como o melodista Joubert de Carvalho (1900-1977), Custódio Mesquita (1910-1945), André Filho (1906-1974), autor de Cidade maravilhosa, Alberto Ribeiro (1902-1971) autor de 85 músicas com João de Barro, também fazem parte deste contexto. O letrista Orestes Barbosa (1898-1966), autor das antológicas Chão de estrelas e Arranha-céu (canção e valsa, respectivamente), ambas em parceria com Silvio Caldas, de 1937, também contribui com o talento de sua poesia (Idem: 2008; pp. 107-111).

Grandes cantores se juntam a esses compositores. Mario Reis (1907-1981), ex-aluno de violão de Sinhô na década anterior, surge com um estilo diferente de cantar, explorando as novas possibilidades do microfone e da gravação elétrica. Seu canto coloquial e intimista marcou a época na qual sinônimo de bom cantor era aquele que possuía potência de voz e impostação (Idem: 2008; pp. 107-111).

Carmen Miranda (1908-1955), primeira cantora a alcançar grande sucesso nacional e que viria a se tornar a maior estrela da música brasileira no estrangeiro, surge no início desta década de 1930. É de janeiro deste ano seu disco de estréia. A Pequena Notável, como ficou conhecida, foi amiga dos grandes compositores da época, gravando praticamente todos eles. Na lista estão Ary Barroso (Na Baixa do Sapateiro), Lamartine Babo (Cantores do rádio c/ Aberto Ribeiro e João de Barro), Assis Valente (Camisa listrada), Dorival Caymmi (O que é que a baiana tem), João de Barro (Primavera no Rio), Sinval Silva (Adeus batucada), André Filho (Alô, alô), Zequinha de Abreu (Tico- tico no fubá), para citar um exemplo de cada. Se tornaria a Brazilian Bombshell de Hollyhood, chamando a atenção do mundo para a música do Brasil (Idem: 2008; pp. 107-111).

Neste mesmo início de ano, surge Silvio Caldas (1908-1998), o caboclinho querido, um dos ícones da seresta e que manteve uma longa carreira de mais de cinqüenta anos. Foi amigo de cantores como Orlando Silva, Mario Reis e Francisco Alves, formando com estes um seleto e respeitável grupo de estrelas da época; Almirante (Henrique Foreis Domingues, 1908-1980), cantor e amigo de Noel e Braguinha e depois produtor de rádio e pesquisador de música popular, sendo considerado a maior patente do rádio, por seu apelido de Almirante; Moreira da Silva (1902-2000) notabilizou-se como o maior intérprete do samba-de-breque. Seu nome é quase sinônimo deste gênero musical; o conjunto vocal Bando da Lua foi o pioneiro neste estilo, influenciando tantos outros que surgiriam. Liderado por Aloysio de Oliveira (que mais tarde seria um grande produtor musical, tendo trabalhado com João Gilberto e Tom Jobim entre outros da bossa-nova), o grupo acompanharia Carmen Miranda até o final de sua carreira. Com a morte de Carmen em1955, o grupo também se dissolveu (Idem: 2008; pp. 107-111).

Dentre os instrumentistas que surgiram ou já estavam atuando nesta época de ouro, destacam-se alguns como o grande pianista-compositor-arranjador Radamés Gnattali (1906-1988) que atuou nas áreas erudita e popular; o chorão, compositor e líder mais famoso regional da Era do Rádio, Benedito Lacerda (19031958), tendo sido o principal flautista de sua geração; o multiinstrumentista Garoto (Aníbal Augusto Sardinha, 1904-1987) detinha grande maestria nas cordas dedilhadas. Dominava como poucos o violão, o volão-tenor, o banjo, o bandolim, o cavaquinho e até a guitarra havaiana; completando este time, o bandolinista Luperce Miranda (1904-1977), chorão e compositor recifense (Idem: 2008; pp. 107-111).

Outros nomes da geração anterior também atuam, abrilhantando esta fase. Estão entre eles estão os cantores Francisco Alves, (o Rei da Voz, 1898-1952), Vicente Celestino (1894-1968), Patrício Teixeira (1893-1972), Aracy Cortes (19041985) e Paraguaçu (Roque Teixeira, 1884-1976); os músicos compositores Pixinguinha (Alfredo da Rocha Viana, 1897-1973), Josué de Barros (1888-1954), Donga (Ernesto dos Santos, 18901974), João da Baiana (João Machado Guedes, 1887-1974), Zequinha de Abreu (José Gomes de Abreu, 1880-1935), Heitor dos Prazeres (1898-1968) e os letristas Luís Peixoto (1889-1973) e Olegário Mariano (1889-1958) (Idem: 2008; pp. 107-111).

Orlando Silva, o Cantor das multidões (1915-1978), reinou absoluto como sua bela voz no período de 1937 a 1942. Juntamente ao seu antecessor, amigo e iniciador Francisco Alves e também de Silvio Caldas, formava o seleto grupo de cantores. Seu aparecimento é contado por Jonas Vieira, seu biógrafo. O autor conta que Orlando foi apresentado a Chico Alves por Bororó (Alberto de Castro Simões da Silva, 1898-1986), o compositor do samba Da cor do pecado, que o levou ao Café Nice onde estava o cantor. Depois de tentar, sem sucesso, encaminhar Orlando a um amigo diretor da rádio Cajuti, disse a Orlando que o acompanhasse: 

“... Disse que ele seria ouvido naquele mesmo dia,
pelo Francisco Alves, que se encontrava naquela hora
no Café Nice. Fomos ao seu encontro, Chico estava
com vários amigos na mesa, entre eles Antônio
Nássara, Orestes Barbosa, Ewaldo Rui, Eratóstenes
Frazão, Germano Augusto, Kid Pepe, Rubens Soares,
além de outros que não me lembro mais. Pedi ao
Chico para ir lá fora ouvir um rapaz que acabara de
me impressionar e ele prometeu que sairia em
seguida. Juntei-me outra vez a Orlando e, logo
depois, vieram Chico e quase todos aqueles nomes
que citei. Fiz a apresentação e o grupo saiu em
direção à rua Chile (...) O resto, todo mundo sabe. A
ascensão meteórica do Orlando, como nenhum outro
cantor, realmente incomparável em voz e
interpretação. Ninguém foi igual a ele” (Vieira: 2004;
pp. 65-66).

Ainda nomes como o de Herivelton Martins (1912-1992), Wilson Batista (1913-1968), Ataulfo Alves (1909-1969), Haroldo Lobo (1910-1965), Roberto Martins (1909-1992), Mario Lago (1911-2002) e Geraldo Pereira (1918-1955) entre tantos outros, só para citar os mais famosos, dão o tom do que foi essa época maravilhosa da música popular brasileira e, sobretudo, do samba. 

Durante toda a década de 1930, cerca de 32% do repertório gravado foi de sambas. Marca importante que mostra que o povo brasileiro assimilou este gênero musical rapidamente, minimizando assim, a influência do maxixe. Jairo Severiano considera que os maiores autores de samba da Época de Ouro, considerando os que optaram “como meio preferido de expressão” apenas este ritmo, são: Ismael Silva, Alcebíades Barcelos, Nilton Bastos, Armando Marçal, Ary Barroso, Noel Rosa, Wilson Batista, Ataulfo Alves e Geraldo Pereira. São deles verdadeiras obras-primas como Se você jurar, (de Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves, 1931), Para me livrar do mal (de Ismael Silva e Noel Rosa, 1932), Faceira e Morena boca de ouro (de Ary Barroso, 1931 e 1941), Com que Roupa e Último desejo (de Noel Rosa, 1931 e 1937), Agora é cinza e A primeira vez (de Alcebíades Barcelos e Armando Marçal, 1934 e 1940), O bonde de São Januário (de Wilson Batista e Ataulfo Alves, 1941), Emília (de Wilson Batista e Haroldo Lobo, 1942), Ai que saudades da Amélia (de Ataulfo Alves e Mario Lago, 1942) e Falsa Baiana (de Geraldo Pereira, 1944) (Severiano: 2008; pp. 173-174).

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SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008.

VIEIRA, Jonas. Orlando Silva, o cantor das multidões. 3ª ed. Rio

de Janeiro: FUNARTE, 2004.


(Monografia - parte) “SAMBA E MODERNIDADE - O samba como agente transformador na primeira metade do século XX” de 2010, de Francisco de Assis Furriel Gonçalves)


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quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Agora é cinza


De 
Alcebíades Barcelos & Armando Marçal
(Bide e Marçal)



Assis Furriel: Voz
David Oliveira: Violão


Você partiu
Saudades me deixou, eu chorei
O nosso amor foi uma chama
Que o sopro do passado desfaz
Agora é cinza
Tudo acabado e nada mais

Você partiu de madrugada
E não me disse nada. Isto não se faz
Me deixou cheio de saudades e paixão
Não me conformo com a sua ingratidão

Agora, desfeito o nosso amor
Eu vou chorar de dor
Não posso esquecer
Vou viver distante dos teus olhos
Oh, querida! Que não me deu
Um adeus por despedida
(Chorei porque)

Você partiu
Saudades me deixou, eu chorei
O nosso amor foi uma chama
Que o sopro do passado desfaz
Agora é cinza
Tudo acabado e nada mais



quinta-feira, 25 de julho de 2013

A dor

Imagens cinzas envolventes,
num misto de lágrima e dor,
num processo acelerado de sombras,
me levam a diversas dimensões,
rodopiando à minha frente
como um caleidoscópio de ilusões.
E quando volto a mim, estou exausto,
cansado mesmo da dor.

Ela, a dor, casa-se à minha pele,
que incapaz e frágil se entrega
como uma caça ao caçador audaz.
A dor, sempre que percebe minha desatenção,
corre ao meu encontro despertando-me.
Ela é quem me liga ao divino.

Canso-me dela e nem sempre a preciso.
Mas, acho até mesmo que a dor não é má.

Imagens retorcidas no inconsciente
surgem para me conscientizar.
_Incrível isso!

A dor é minha mal-amada musa.
E eu que me encontrava perdido,
me encontro, depois que ela, passando
por mim, se vai.


Texto escrito originalmente em maio de 1990.

domingo, 7 de julho de 2013

Não quero mais amar a ninguém




Não quero mais amar a ninguém
Não fui feliz, o destino não quis
O meu primeiro amor                                                       [ Estribilho]
Morreu como a flor ainda em botão
Deixando espinhos que dilaceram meu coração

Semente de amor sei que sou desde nascença
Mas sem ter brilho e fulgor, eis a minha sentença
Tentei pela primeira vez, um sonho vibrar
Foi beijo que nasceu e morreu sem se chegar a dar

ESTRIBILHO

As vezes dou gargalhada ao lembrar do passado
Nunca pensei em amor, nunca amei nem fui amado
Se julgas que estou mentindo, jurar sou capaz
Foi simples sonho que passou e nada mais

ESTRIBILHO

O que dou preferência hoje em dia
É viver com bastante alegria
E o sorriso que esperava esconder
Saudade que me faz sofrer


Composição de Zé da Zilda, Carlos Cachaça e  e Cartola (1936)
Interpretada por Assis Furriel (voz) e David Oliveira (violão)

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quarta-feira, 3 de julho de 2013

O sal do samba

A impressão de que o samba não envelhece é uma coisa muito forte em mim. Ouve-se sambas compostos há 80 anos e percebe-se sua contemporaneidade, tanto na letra quanto na melodia. Os sambas de Noel Rosa, Cartola, Wilson Batista e Geraldo Pereira, só para citar quatro compositores clássicos, são exemplos disso. Obviamente, a história do samba é representada por outros compositores que imprimiram essa modernidade ao gênero.

Algumas épocas marcaram tão fortemente a memória social, que suas músicas também remetem a esses tempos. De modo que ficam, como costuma-se dizer, datadas. A canção de característica política dos anos 60 é um exemplo. Esta música, quando ouvida décadas depois, nos dá a impressão de um tempo longínquo, às vezes melancólico, às vezes puramente histórico. Canções assim tornam-se músicas que só são executadas em homenagens a temas específicos ou nas antologias de compositores importantes.

No entanto, sambas compostos numa mesma época, como a dos anos 60, curiosamente, não aparentam mostrar algo ultrapassado pelo tempo. Não sei se pelas letras, em geral de cunho popular, como pela crônica da gente simples ou se por seu ritmo especialíssimo. O fato é que conseguimos transportá-los facilmente para os tempos atuais.

Se analisarmos pela questão dos gêneros musicais, também perceberemos essa diferenciação do samba em relação a outros, como por exemplo, o choro, a marcha, o bolero, o próprio samba-canção, o rock`n`roll dos anos 50 etc.

Pode-se ouvir sambas de Noel e de Cartola dos anos 30 ou outros de Geraldo Pereira e de Wilson Batista dos anos 40 e 50 e sentir sua contemporaneidade nos versos, ritmos e melodias.

O samba moderno, transformado nos morros cariocas e consolidado nas rádios brasileiras, a partir de um projeto de Estado, como um dos símbolos nacionais, é o samba do qual estou me referindo. É importante identificá-lo, pois bem sabemos que este gênero musical guarda consigo uma grande variedade rítmica e que se diferencia por samba-de-roda, samba-canção, samba-de-partido-alto, samba-choro e por aí vai. 

Pois bem, este samba moderno, símbolo nacional, é de origem carioca e sempre esteve envolvido no debate ideológico que busca identificar seu berço.

Ora, este samba, a meu ver, nasceu no morro mesmo. Suas raízes hereditárias, essas sim, são de diferentes origens. Considerando que ritmos como o lundu, o maxixe e o choro remetem a lugares e a culturas diversas, podemos concluir, pois, que o debate se justifique. Mas, considerar que o samba carioca, como conhecemos hoje, nasceu na Bahia ou na Pedra do Sal ou mesmo nas rodas da casa da Tia Ciata é remetê-lo aos seus ancestrais. Eu diria que esses ritmos citados compõem uma pré-história do samba. Essa disputa pela natalidade do samba foi motivo de inspiração para Noel Rosa, que em Feitio de Oração (com Vadico) resolveu fechar questão dizendo que o samba na realidade não viria do morro nem da cidade, mas do coração sensível.

“... O samba na realidade não vem do morro
Nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o samba então
Nasce do coração”

O gênero foi inventado a partir da transformação em sua síncope e tornou-se algo novo, adquirindo a propriedade que tem o sal de conservar-se a si próprio. O samba continua atual, porque sobreviveu a todos os tempos, acompanhando os movimentos musicais e seus novos gêneros, como a MPB surgida nos anos 60. 

Como diz o sambista e poeta Nelson Sargento: “samba agoniza, mas não morre”.



"Cem mil réis", de Noel e Vadico (1934), apresentado por Marília Batista 
(a intérprete preferida de Noel, juntamente com Aracy de Almeida) e o conjunto Coisas Nossas.



Cartola canta "Quem me vê sorrindo", de Cartola e Carlos Cachaça (1939).



"Acertei no milhar", de Wilson Batista e Geraldo Pereira (1940), com Jorge Veiga.



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quinta-feira, 20 de junho de 2013

Borzeguim


(Tom Jobim)


Borzeguim, deixa as fraldas ao vento
E vem dançar
E vem dançar
Hoje é sexta-feira de manhã
Hoje é sexta-feira
Deixa o mato crescer em paz
Deixa o mato crescer
Deixa o mato
Não quero fogo, quero água
(deixa o mato crescer em paz)
Não quero fogo, quero água
(deixa o mato crescer)
Hoje é sexta-feira da paixão sexta-feira santa
Todo dia é dia de perdão
Todo dia é dia santo
Todo santo dia
Ah, e vem João e vem Maria
Todo dia é dia de folia
Ah, e vem João e vem Maria
Todo dia é dia
O chão no chão
O pé na pedra
O pé no céu
Deixa o tatu-bola no lugar
Deixa a capivara atravessar
Deixa a anta cruzar o ribeirão
Deixa o índio vivo no sertão
Deixa o índio vivo nu
Deixa o índio vivo
Deixa o índio
Deixa, deixa
Escuta o mato crescendo em paz
Escuta o mato crescendo
Escuta o mato
Escuta
Escuta o vento cantando no arvoredo
Passarim passarão no passaredo
Deixa a índia criar seu curumim
Vá embora daqui coisa ruim
Some logo
Vá embora
Em nome de Deus é fruta do mato
Borzeguim deixa as fraldas ao vento
E vem dançar
E vem dançar
O jacu já tá velho na fruteira
O lagarto teiú tá na soleira
Uirassu foi rever a cordilheira
Gavião grande é bicho sem fronteira
Cutucurim
Gavião-zão
Gavião-ão
Caapora do mato é capitão
Ele é dono da mata e do sertão
Caapora do mato é guardião
É vigia da mata e do sertão
(Yauaretê, Jaguaretê)
Deixa a onça viva na floresta
Deixa o peixe n'água que é uma festa
Deixa o índio vivo
Deixa o índio
Deixa
Deixa
Dizem que o sertão vai virar mar
Diz que o mar vai virar sertão
Deixa o índio
Dizem que o mar vai virar sertão
Diz que o sertão vai virar mar
Deixa o índio
Deixa
Deixa


Passarim


(Tom Jobim/ Paulo Jobim)

Passarim quis pousar, não deu, voou
Porque o tiro partiu mas não pegou
Passarinho, me conta, então me diz:
Por que que eu também não fui feliz?
Me diz o que eu faço da paixão?
Que me devora o coração..
Que me devora o coração..
Que me maltrata o coração..
Que me maltrata o coração..

E o mato que é bom, o fogo queimou
Cadê o fogo? A água apagou
E cadê a água? O boi bebeu
Cadê o amor? O gato comeu
E a cinza se espalhou
E a chuva carregou
Cadê meu amor que o vento levou?
(Passarim quis pousar, não deu, voou)

Passarim quis pousar, não deu, voou
Porque o tiro feriu mas não matou
Passarinho, me conta, então me diz:
Por que que eu também não fui feliz?
Cadê meu amor, minha canção?
Que me alegrava o coração..
Que me alegrava o coração..
Que iluminava o coração..
Que iluminava a escuridão..

Cadê meu caminho? A água levou
Cadê meu rastro? A chuva apagou
E a minha casa? O rio carregou
E o meu amor me abandonou
Voou, voou, voou
Voou, voou, voou
E passou o tempo e o vento levou

Passarim quis pousar, não deu, voou
Porque o tiro feriu mas não matou
Passarinho, me conta então, me diz:
Por que que eu também não fui feliz?
Cadê meu amor, minha canção?
Que me alegrava o coração..
Que me alegrava o coração..
Que iluminava o coração..
Que iluminava a escuridão..
E a luz da manhã? O dia queimou
Cadê o dia? Envelheceu
E a tarde caiu e o sol morreu
E de repente escureceu
E a lua, então, brilhou
Depois sumiu no breu
E ficou tão frio que amanheceu
(Passarim quis pousar, não deu, voou)
Passarim quis pousar não deu
Voou, voou, voou, voou, voou


Coração Civil


(Milton Nascimento/ Fernando Brant)

Quero a utopia, quero tudo e mais
Quero a felicidade nos olhos de um pai
Quero a alegria muita gente feliz
Quero que a justiça reine em meu país
Quero a liberdade, quero o vinho e o pão
Quero ser amizade, quero amor, prazer
Quero nossa cidade sempre ensolarada
Os meninos e o povo no poder, eu quero ver
São José da Costa Rica, coração civil
Me inspire no meu sonho de amor Brasil
Se o poeta é o que sonha o que vai ser real
Bom sonhar coisas boas que o homem faz
E esperar pelos frutos no quintal
Sem polícia, nem a milícia, nem feitiço, cadê poder ?
Viva a preguiça viva a malícia que só a gente é que sabe ter
Assim dizendo a minha utopia eu vou levando a vida
Eu viver bem melhor
Doido pra ver o meu sonho teimoso,um dia se realizar