quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Lembranças de um Festival


     Sobre o “Festival de 75”, tenho algumas lembranças, quase todas bem fragmentadas por conta do tempo que se passou e também pela pouca idade que tinha na época. Aconteceu na Escola João de Camargo em dezembro de 1975. A escola já tinha por prática a elaboração de eventos artísticos, incentivando os alunos a desenvolverem seus talentos. Era comum a realização de peças de teatro, as exposições de artes plásticas etc. Porém, este festival de música foi especialíssimo para mim. Foi por causa deste evento que decidi, a todo custo, estudar ali.

     A emoção de ouvir o coro do público cantando o refrão de “Eu quero o meu enredo” acompanhando o Sergio Cesar Rosa, não tinha preço. O Sergio era bem carismático e sabia que o samba ia pegar. A música tinha sido composta por mim e pelo Ronaldo Alves, meu primeiro e melhor amigo. Lembro-me bem que quando saiu o resultado final da vitória, Ronaldo e eu nos abraçamos e, se não estou enganado, chegamos às lágrimas. Afinal, era muita história resumida ali, naquele momento do grito de “é campeão!”. Recordo-me que tinha um pessoal por perto de nós que não entendia nada, pois para todos, o samba era do próprio Sergio. Era uma exigência da Escola que as músicas inscritas fossem de autoria dos alunos e naquela época, Ronaldo e eu ainda não éramos alunos da João de Camargo. Ao mesmo tempo em que nos abraçávamos, éramos abraçados por outros como Sandra Alves, Wagner Aves (irmãos do Ronaldo) e Malvina Fernandes, todos reunidos dentro da biblioteca que ficava ao lado do local onde estava o palco. Aliás, o palco era apenas uma mesa grande e alta, sobre a qual os “meninos” se apresentavam. Na apresentação de “Primavera”, canção de Deise Cordeiro que tirou o terceiro lugar (segundo a própria Deise, 2º lugar em melodia (?)), tinha tanta gente sobre o “palco” que não sei como não houve um acidente. Achei fantástica essa apresentação, pois tinha violão, flauta entre outros instrumentos, além da voz da Deise, é claro.

     Várias músicas apresentadas no festival daquele ano marcaram o momento. Embora não consiga lembrar de todas inteiramente, seria possível fazer um retrato daquele tempo através do recorte das músicas. Uma falava do Metrô que estava tendo a sua construção iniciada. Falava-se de como era difícil conviver com tanto barulho e tantos buracos pela cidade: “Metrô está aí fora/ Furando tudo que é lugar/ Vou me mudar daqui agora/ Dessa maneira não dá mais pra agüentar”. Outra falava de rock, uma outra de desenho animado, uma outra ainda, falava da superstição da sexta-feira 13: “Sexta-feira 13, Sexta-feira 13 é/ Sexta-feira 13 consagrado o dia do azar...”. Infelizmente não me lembro dos autores.

     No entanto, a minha música preferida foi e é até hoje o samba da Terezinha Pinto que falava da partida inevitável e da necessidade de olhar o futuro com confiança, sem ilusões: “Quando eu partir/ Não quero choro/ Somente o meu tamborim/ Minha cuíca e um pedaço de madeira/ Pra quando estiver de bobeira/ Eu vou cantar meu samba assim/ Chorar pra quê, pra quê chorar, o que passou nunca mais irá voltar...”

     Parte dessa moçada encontrou-se recentemente para uma confraternização, após mais de 30 anos. É a força da memória afetiva.



segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A tolerância é uma virtude especificamente ocidental?

Comentário sobre o texto de Amartya Sen, “Cultura e direitos humanos”, quanto a alegação de que a tolerância é uma virtude especificamente ocidental.


A alegação de que a tolerância é uma virtude especificamente ocidental tem sua origem no pensamento ocidental e moderno. O autor defende a todo tempo a relativização dessa tese, defendendo que nem sempre o ocidente teve tolerância. Quando fala da tolerância islâmica (p. 273), Sen cita o imperador mongol Akbar, que reinou na Índia entre 1556 e 1605 e promovia a tolerância quanto às diversas formas de comportamento social e religioso, como liberdade de culto e a prática religiosa que não seriam, segundo ele, facilmente tolerados em partes da Europa naquela época. Enquanto “as inquisições estavam em pleno vapor na Europa”, Akbar fazia pronunciamentos e decretos como o citado no texto[1]. Amartya Sen considera que a valorização da liberdade não se limita a uma só cultura e que o pensamento social baseado na liberdade não é de propriedade das tradições ocidentais.

Na verdade, o autor busca o entendimento das distintas visões de mundo, analisando também o outro lado. Quando indagado por um crítico sobre onde encontrar na história asiática uma equivalência ao que se considera uma notável história de ceticismo, ateísmo e livre pensar ocidental, o autor diz que não é difícil encontrar. Ele cita, no caso da Índia, as escolas ateístas de Carvaka e Lokayata, bem anteriores à era cristã, cuja literatura ateísta foi duradoura, influente e vasta. Amartya defende que apesar das constantes violações da tolerância por toda parte em qualquer cultura, persistentemente, vozes em favor da liberdade se levantam de todas as formas, em culturas distintas e distantes.


 “Nenhum homem deve ser incomodado por motivos de religião, devendo-se permitir a qualquer um mudar para a religião que lhe aprouver. Se hindu, quando criança ou em outra época de sua vida, houver sido feito muçulmano contra a sua vontade, deve-se permitir que ele retorne, se assim o desejar, à religião de seus antepassados” (p. 274).



Questão trabalhada na aula de Direitos Humanos (Tema Transversal) - 2º semestre de 2010

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A poesia e o universo feminino

Outro dia estava pensando sobre a poesia e sobre o talento que os poetas têm de imaginar situações, sensações e sentimentos, inventando um mundo paralelo, no qual tudo é possível. Pensei na surpresa que alguns poemas nos causam pela originalidade.

O poema “Nas ruas” de Eliana Pichinine é um exemplo disso. Nele, Pichinine pressupõe ficar no espaço mínimo, entre as pedras portuguesas, os amores interrompidos. Seu curto poema resume uma imensidão de possibilidades de interpretação:


“Des(gastei) a solidão
andando
Nos contornos
das pedras portuguesas
teimavam as lembranças
de tropeços enamorados”

A imagem é bacana, pois o tropeço supõe a interrupção de um andar, consequentemente, a interrupçao de um objetivo. Somente uma mulher ou um poeta poderia parar para pensar em como e o quanto as pedras portuguesas podem reter do universo feminino. Na infinidade dos inúmeros tropeços, com seus altíssimos saltos, a mulher acaba por deixar naqueles espaços dores, revoltas, descuidos e, por que não, amores trôpegos. Fica a dor do tropeço como também a dor de amor. Um homem não pensaria em sentimentos deixados entre as lusas pedras. Não veria necessidade. Essas não nos dizem nada de especial, além de comporem, no imenso calçadão, as ondas da praia mais famosa do mundo.

Outro exemplo ímpar de imaginação poética é a música de Gilberto Gil, “Entre a sola e o salto”, gravada por Alcione no LP “Alerta Geral” de 1978. O compositor consegue imaginar o mundo e a imensidão no espaço entre a sola e o salto da mulher, provavelmente de tão alto que é. O gênio de Gil consegue ver ali naquele vão um abrigo contra o orgulho da ilusão, um espaço tão grande que cabe um coração. A visão de Gilberto Gil remete a um certo fetiche, fazendo do espaço singular um lugar de aconchego.


Entre a sola e o salto (Gilberto Gil)

Vê/ Por aquela janela/ Entre a sola e o salto do sapato alto dela/ Vê/ Por ali, pelo vão/ Entre a sola, o salto do sapato alto dela e o chão/

Vê/ Como existe um abrigo/ Entre a sola e o salto do sapato alto/ Contra o perigo do orgulho, da ilusão/ Basta um centímetro prum grande coração/ No espaço, ali embaixo/ Entre a sola e o salto existe a imensidão/

Vê/ Como cabe folgada/ A imensidão do olhar numa nesga de chão/ Num pedaço de calçada/

Vê/ Que há bastante lugar/ Prum coração chegar ali, ficar ali/ Passar dali pra acolá/

Ê, ê, quanto amor/ No espaço embaixo do sapato dela/ Ê, ê, quanto amor/ No abrigo embaixo do sapato dela/ Ê, ê, quanto amor/ No teto embaixo do sapato dela/ Ê, ê, quanto amor/ Na tenda embaixo do sapato dela/



Veja o vídeo de "Entre a sola e o salto"
Leia o poema "Nas ruas"

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Palavras que brotam

O Sol me aqueceu na medida certa

A chuva molhou as boas e as más lembranças

O amor inspirou-me de todo

Então, elas vieram

De todo jeito, de toda forma, chegaram, romperam

Brotaram as palavras


                                                              por Assis Furriel




Homenagem ao novo blog de minha amiga Katia.

Bem-vinda à bloguesfera!

domingo, 19 de dezembro de 2010

Autopsicografia 2

  
O historiador é um fingidor (Eu sou)

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é história

A história que deveras mente (Eu minto)

Por Assis Furriel



Paródia do poema “Autopsicografia” de Fernando Pessoa


(Uma provocação e uma proposta de reflexão sobre a missão do historiador junto ao seu objeto de estudo)

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A poesia de Adélia Prado III

Ensinamento

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.



Módulo de Verão

As cigarras começaram de novo, brutas e brutas.
Nem um pouco delicadas as cigarras são.
Esguicham atarraxadas nos troncos
o vidro moído de seus peitos, todo ele
(chamado canto) cinzento-seco, garra
de pêlo, arame, um áspero metal.
As cigarras têm cabeça de noiva,
as asas como véu, translúcidas.
As cigarras têm o que fazer,
têm olhos perdoáveis.
- Quem não quis junto deles uma agulha??
- Filhinho meu, vem comer,
ó meu amor, vem dormir.
Que noite tão clara e quente,
ó vida breve e boa!
A cigarra atrela as patas
é no meu coração.
O que ela fica gritando eu não entendo,
sei que é pura esperança.


(Do livro Bagagem, 1976)


sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Rosinha, minha canoa




A história de José Mauro de Vasconcelos de 1962 fala da relação mágica de Zé Orocó e sua canoa Rosinha. O autor de "Meu pé de laranja lima" transporta-nos a um universo mágico da floresta e nos faz refletir sobre essa natureza das matas e dos bichos. O capítulo "Olhos Vegetais" é um hino de amor à natureza. Nele, José Mauro conta o surgimento da canoa. A partir da história do nascimento e da vida de uma canjirana-branca, narrada pela própria Rosinha ao seu dono Orocó, o autor revela o desejo de um velho landi em transformar-se numa canoa a serviço dos índios. É simplesmente lindo e emocionante.

Devo a apresentação desse livro ao meu amigo Valtair que me indicou, emocionado (romântico como era) a beleza dessa obra. Valtair não está mais entre nós fisicamente, mas deixou lembranças de grandes momentos como esse.  Cheia de lirismo e encanto, essa história me marcou muito.

Esta indicação é muito em sua homenagem.



quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O disco do Blog

BICICLETA


01 - Um Canto de Trabalho (Nelson Ângelo / Cacaso)
02 - As Moças (Zé Renato / Juca Filho)
03 - Correnteza (Tom Jobim / Luis Bonfá) with Antonio Carlos Jobim
04 - Neném (Maurício Maestro)
05 - Porto Seguro (David Tygel / Márcio Borges)
06 - Bicicleta (Zé Renato)
07 - Saci (Paulo Jobim / Ronaldo Bastos) with Antonio Carlos Jobim
08 - Passarinho (Lourenço Baeta)
09 - "Boi do Maranhão" - Urrou do Boi (Tradicional) - Boi do Pindaré (Tradicional) - Boi Danado (Sergio Habibe)
10 - Arado (Dalmo Medeiros)
11 - Nossa Dança (Danilo Caymmi / Ana Terra)

O disco faz vinte anos e é um clássico da música brasileira e, como o primeiro do grupo, marcou uma época. "Bicicleta" é uma obra de arte vocal.


O Boca:

David Tygel
(viola, violao, vocal)
Jose Renato
(violao, vocal)
Mauricio Maestro
(bass, violao, viola, vocal, instrumental and vocal arrangements)
Lourenco Baeta
(violao, viola, vocal, flute, violin)



Ouça Bicicleta



domingo, 5 de dezembro de 2010

A poesia e o homem

Costuma-se dizer que para tudo na vida existe uma razão, uma utilidade. Nada está na natureza por acaso ou “capricho dos deuses”. Tudo contribui para o equilíbrio ecológico e o homem, é claro, se encontra neste contexto.

Uma preocupação toma os curiosos de assalto, levando-os a se questionarem quanto à utilidade de inúmeras coisas ou de seres exóticos, como os animais abissais, ou não tão exóticos, como determinados insetos, por exemplo. Para que servem esses seres estranhos?

No conjunto desse contexto está a explicação para a poesia. Por que existe poesia? Eu avanço um pouco mais na indagação no sentido da arte de um modo geral. Por que existiria a música, a dança, a dramaturgia, a literatura, a pintura? E mais: a pergunta mais audaciosa seria: existiria vida sem poesia e arte em geral? Será que o homem sobreviveria sem as artes, sem a ficção?

Uma vez, numa palestra de um amigo, ouvi sobre a utilidade de muitas coisas que existem e que não sabemos bem a razão. Muitas vezes, achamos que tudo isso poderia não existir e assim facilitar nossas vidas. Ele falou sobre a utilidade da poeira como filtro solar. Nunca passou pela minha cabeça pensar em algo assim, simples, mas correto. De modo geral atribui-se à poeira apenas o incômodo da poluição que ela causa. No entanto, as partículas de poeira suspensas no ar servem de escudo refletor contra os raios solares, evitando assim, que os mesmos incidam diretamente sobre nós humanos, dizimando-nos facilmente. 

Pois é! Com a arte acontece algo parecido. A arte é como a boa poeira que nos protege da aridez do mundo. A vida ao vivo e a cores é extremamente fria, forte, difícil, árida, sofrível e quantos mais adjetivos procurarmos para expressarmos as dificuldades vividas. O homem necessita da abstração, da invenção, da interpretação dessa vida. E esse talento que ele tem de inventar e se reinventar é que o faz sobreviver e às vezes viver um pouco também. Por que não?

O mundo sem o lirismo dos poetas seria insuportável. A força que o homem tem de criar, salvando-o da dor, do tédio e do vazio é o que o faz feliz. Assim como é importante o alimento para o corpo, a poesia o é para a alma. 




quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Memória musical


As lembranças mais claras que tenho dos tempos passados são, em geral, lembranças ligadas a algum tipo de som musical.
Com as do tempo da Escola João de Camargo acontece igualmente. Alguns amigos já se surpreenderam com a minha memória especial. De fato, considero que tenha uma boa memória, porém associo essa facilidade aos recortes e filtros que todos fazemos daquilo que nos interessa. A tal da memória seletiva. A minha seleção passa, entre outros interesses, pela memória musical. É a que mais me auxilia no armazenamento das minhas lembranças.
Algumas lembranças são classificadas como memórias da pele, como aquelas que nos vêm pelo contato físico, não somente as de fundo romântico, mas tantas outras, como a lembrança de uma senha somente pelo tato dos dedos no teclado; um beijo especial de mãe ou de pai; um aperto de mão forte, etc. A lembrança passa por todos os sentidos, como o do tato, já citado, que possibilita o reconhecimento das faces amigas pelos deficientes visuais ou o do olfato, pelo cheiro do campo ou de um prato especial que marcou em algum tempo.
Uma música dos compositores Lô Borges e Ronaldo Bastos chamada “Uma canção” trata muito bem do poder de ligar alguém no espaço e no tempo. Ela fala que “uma canção tem cheiro e pode transportar uma fração de um tempo qualquer que a gente viveu num outro lugar”. Acredito que qualquer pessoa com sensibilidade mínima concordará com essa afirmação.
A memória musical guarda tanto cenas inteiras quanto frações mínimas de uma história, como as de uma ou duas notas tocadas. Até hoje, ressoa em minha memória o som das teclas de um piano, na sala Rotary, que ficava no pátio da João de Camargo. A sala havia sido um presente do Rotary Club e era separada do prédio principal da escola. D. Fernanda tocou de ouvido as notas do meu samba “Eu quero o meu enredo” que eu cantarolava para ela. É difícil descrever a alegria e a emoção de ouvir pela primeira vez o som da minha composição em um instrumento musical. A música ganhava uma beleza e uma importância que acabavam por afirmar a composição de fato. Agora era uma música de verdade. Devo a D. Fernanda essas memórias tão caras para mim.
Outro momento especialmente musical era o grupo de percussão, do qual fiz parte por pouco tempo, mas me lembro bem. O toque e o som dos pauzinhos nos arranjos criados e ensaiados pela professora Naila marcaram também minha forma de observar a música como um todo. Passei a conhecer o arranjo, a colaboração de muitos no resultado único da música apresentada: “Estrela brilhante, lá no alto mar... Olha macumbebê, olha macumbabá”. Ensaiávamos em meio a estantes de livros da biblioteca, lugar sagrado para muitos e que tinha em D. Naila a principal referência, o que tornava o lugar mais especial ainda. Era ela a grande fomentadora cultural da escola, seguida, é claro, pelos outros que estavam sempre dispostos a uma boa idéia.