sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Pink Bar, o bar do Zé

Reprodução bem aproximada do logotipo
É isso mesmo, o bar era cor-de-rosa. Cor-de-rosa e preto. A história é longa e cheia de detalhes curiosos. Éramos um grupo de amigos que entre os anos 80 e 90 nos reuníamos para tocar e cantar, sair para shows etc. Morávamos em São Cristóvão e nos concentrávamos preferencialmente na casa do Zé Renato, cuja enorme família era festeira e ainda reunia outros agregados. Fizemos altas festas e churrascos entre inesquecíveis jam sessions. Tinha o Luiz (meu grande parceiro já apresentado por aqui), o Jorginho (irmão do Zé), o Mirinho, Marcio e Marcelo (irmãos do Zé), o Abel (irmão branco, meio adotivo, do Zé) e outros mais novos e mais velhos da turma, filhos e amigos da família.

Parte da turma, a partir da esquerda:
Zé, Jorginho, Tom, Assis, Luiz e Mirinho num daqueles churrascos.

Duro e sem emprego, um dia o Zé Renato virou e falou: _vou abrir um bar. Pensamos, “que legal, vamos ter um point e dar um sossego pra Tia Carmen e pro Tio Jorge”, respectivamente mãe e padrasto do Zé. Foi mais ou menos o que aconteceu, embora duvide muito que D. Carmen ou Seu Jorge (mãezona e paizão) se incomodassem conosco. 

Quando, enfim, o Zé arrendou o bar, ou melhor, o boteco, ou ainda, o pé-sujo, fomos até lá pra ver. Nosso “point” parecia ter saído dos anos 50/60, direto do túnel do tempo. O bar tinha aquele estilo pequeno com balcão enorme. Aqueles do tipo português, enorme, revestido de fórmica com listras coloridas, formando uma espécie de S que ocupava quase todo o pequeno espaço do salão, ou melhor, salinha. Beleza! De dia, o Zé ralava com seu fiel escudeiro Aécio, servindo rango pra uma clientela que já frequentava o local e à noite, passávamos por lá pra bater papo e, obviamente, tocar algo despretensioso: um voz&violão e uma caixa de fósforo. O fato é que um público que costumava chegar pra uma cerveja de fim de expediente e mais uns alunos que estudavam nos dois colégios colados ao bar chegavam e ficavam curtindo a gente.

O Zé com seu faro comercial, mais uma vez teve um insight e sugeriu: Por que não plugamos isso tudo, organizamos um setlist e mandamos ver. É nossa hora de curtirmos um som com público e tudo mais. A coisa que era feita de qualquer modo, precisou de organização e um pouco mais de seriedade. Logo, ficamos somente Luiz, Mirinho e eu com a incumbência, porque, apesar de todos fazermos um barulho bacana, os demais acabaram roendo a corda. Então, nasceu ali o trio formado pelo violão do Luiz, a percussão e o backing do Mirinho, a minha voz e a pandeirola que eu também fazia. A coisa pegou de um jeito tal, que demorou muito pouco tempo, talvez um mês ou dois pro Zé parar tudo pra uma boa reforma. O público não conseguia se acomodar, porque o balcão ocupava mais da metade do bar e a banda, o resto. O público que se conformasse com a calçada! Ora, sejamos razoáveis, o público merece um pouco mais de carinho, né?

Pois bem, paramos um tempo. A reforma liderada pelo Zé e capitaneada pelo Seu Jorge, mestre de obras dos melhores, avançou com uma velocidade que só perdia para a pressa de um público de amigos que não queria esperar muito pela volta. Afinal, naquele tempo, o bairro estava escasso de lugares com boa música, bebida e amigos. Como, aliás, ainda hoje é. Diga-se de passagem, São Cristóvão nunca teve essa vocação musical.

Logo, passamos a discutir todos juntos a cara que teria aquele novo espaço (sim, porque nos sentíamos todos meio donos do pedaço). O bar tinha um nome, que realmente não consigo me lembrar direito. Era um nome meio pomposo e que não tinha nada a ver com os nossos propósitos (acho que era Apollo). Estava difícil decidir por um novo nome. O jeito foi avançar com as obras e deixar pra depois o batismo. Quando decidimos pela cor, o nome apareceu. Então, temos que explicar primeiramente o porquê da cor. O bar era um local sem cor, sem estilo, um design decadente e velho. Pra se ter uma ideia, do lado de dentro do balcão havia umas grades que serviam de assoalhos e que dava aos que serviam uma elevação em relação ao público atendido porque o balcão era alto e volumoso. Era uma coisa antiga. Isso tudo era estranho pra uma turma mais jovem e descolada. Queríamos também que as meninas aparecessem e não somente os bebuns de final de turno. Éramos também um grupo de jovens negros, alguns grandes e fortes outros nem tão negros, nem tão fortes, como eu. Só marmanjos! Isso assustava um pouco os brotinhos, pensávamos. Alguém, que não me lembro direito quem, acho que foi o Bira, o mais velho dos não sei quantos (eu sei) irmãos do Zé, sugeriu com coragem; _Pinta de rosa. Vai chamar a atenção de todos. _ Pensamos que poderia mesmo suavizar o visual e atrair mais gente sem medo. _Mais, caramba, rosa é sacanagem. - Afinal, a cor-de-rosa era uma cor muito feminina e, apesar do pessoal não ter nenhum preconceito, achamos que seria uma cor muito enjoativa. Precisávamos de uma composição. Alguém falou: por que não mistura com preto? Vai contrabalançar. Beleza. Gostamos. Resolveu-se que todo o teto seria pintado de preto, descendo pelas paredes, pelo menos uns 40 centímetros. Daí o próprio Zé decretou: _Vai se chamar Pink Bar. O Bira, que era bom de desenho, bolou o logotipo que foi pintado nas duas paredes laterais do salão em preto sobre o rosa. Resumo da ópera (ou melhor, da obra). A retirada daquele dinossauro lusitano do meio do espaço resultou numa ampla área que não podíamos perder mais. O Zé optou por um balcão mínimo, de alvenaria coberto por uma pedra simples e bonita de mármore. Um balcão slim. Pôs um piso moderninho e o bar comportou umas dez ou doze mesas no máximo. Pouco? Sim. Mas, diante das três ou quatro de antes, pra nós era como um Canecão. O Zé, muito esperto e de bom gosto, conseguiu gastar pouco e deixar o lugar aconchegante com uma luz indireta bem bacana. Cool o bastante, para agradar um público mais exigente e ainda continuava servindo os peões (que estranharam um pouco, mas continuavam com fome) durante o dia com a comida que o valente cozinheiro (que eu não me lembro quem era) preparava, sempre com o auxílio luxuoso do nobre Aécio, nosso amigo de infância.

A reforma deve ter durado um mês ou um pouco mais. Foi rápido, porque o bar tinha que faturar. Enquanto isso, o trio rebuscava seu repertório e ensaiava para uma estréia de gala. Fizemos um pequeno estandarte, de fundo preto (pra sobressair sobre o rosa), tudo combinando. Éramos fashion agora. Precisávamos pensar em tudo.

Chegou o dia da reinauguração do bar do Zé e a inauguração de um novo espaço cultural-musical no pedaço. Todos nós tínhamos muitos amigos por ali. Afinal, nascemos no bairro e já fazíamos música de algum modo. Durante a febre do RockBR dos anos 80, o bairro recebeu uma chuva de bandinhas de rock que se apresentavam nas festas dos clubes, nas casas de amigos e, principalmente, nas festas de rua, como as dos meses do São João. Havia uma galera grande que gostava e que estava por ali meio de bobeira. A novidade é que o espaço seria reservado para a boa MPB e no máximo alguns rocks mais cabeças da safra de bandas brasileiras. Muita gente dessa galera chegava para canjas. Amigos baixistas, guitarristas e bateristas sempre apareciam, menos vocalistas, o que me obrigava a me esgoelar horas. Nosso setlist continha mais de 70 músicas, e o som rolava até a madrugada, entremeada com alguns minutos de música ambiente de primeira.

Estreamos com casa e calçada cheias. As mesas eram todas ocupadas com turmas de vários lugares. Gente que trabalhava ali por perto trazia pessoas de outros bairros; casais, turmas de amigos, as nossas famílias. O pessoal que chegava mais tarde estacionava na rua, em frente ao bar, que era aberto em toda a sua largura e continuava sentado em seus carros ou motos, formando uma pequena massa do lado de fora. Alguns, mais chegados, improvisavam churrascos na frente e consumiam a cerveja do bar. 

Ganhei uma fita K7 de uma amiga de trabalho do disco Pegadas do Zé Renato (cantor), que eu adorava. Levei para o Zé Renato (do bar) e ele também curtiu muito e tocava sempre nos intervalos dos sets. Aquela fitinha marcou também aqueles momentos como uma trilha sonora. Hoje em dia, sempre que ouço o CD, lembro do bar e do Zé (o do bar). Tenho o K7 guardado comigo até hoje.

Costumava passar por lá também durante a semana, quando voltava do trabalho. Ficávamos pensando em novidades para a sexta. Pensando em músicas novas e impactantes. Uma vez, estava chateado com algo que não me lembro. O dia não foi bom mesmo. Quando cheguei, não demorou muito, uma corda do violão arrebentou e enquanto o Luiz trocava por uma outra nova, eu resolvi cantar à capela, somente com a marcação do Mirinho, uma música do Martinho da Vila. Era "Disritmia". Foi um sucesso! Outra vez, resolvemos apresentar "O Caçador" do disco do tênis do Lô Borges. Levávamos algumas coisas bem diferentes e inesperadas, como "Minha Superstar" do Erasmo. A mulherada adorava, porque o refrão romântico dizia: "Ela é minha superstar, mulher de brilho farto, que eu sempre hei de ver brilhar no palco do meu quarto". Isso era pegajoso. Pegava fácil e era bom de cantar.

O Zé adorava algumas coisas e forçava a barra pra gente tocar. Infelizmente, algumas não conseguimos levar, como "Não se apague essa noite", também do Lô, que ele adorava e cantava como se estivesse ajoelhado à frente da amada, bem dramático: "Por favor não se apague essa noite, você tem que provar do meu sangue". 

Jorginho, Luiz, o violão, Zé Renato e eu acampando.
Mirinho deu peti e foi embora.
No repertório, uma seleção mais que eclética: O pessoal do Clube da Esquina, começando pelo Milton, Beto Guedes, Lô Borges, Flávio. O Rei Roberto e seu amigo Erasmo. Tim Maia, Hyldon, Cassia Eller, Chico Buarque, Djavan (o nosso preferido), Caetano, Legião, João Bosco, Gonzaguinha, Kid Abelha, Paralamas, Ivan Lins, Barão, Luiz Melodia, Martinho da Vila, Bossa Nova, Gilberto Gil etc. Gostávamos de tocar muita coisa tipo lado B para sair um pouco do comum. Para os mais novos, lado B, remete ao lado “menos importante” do disco de vinil – LP que há anos atrás reinava absoluto.

Essa experiência me marcou demais. Foi uma das coisas que fiz na vida que mais me deu prazer. Pelo menos dois anos cantando publicamente e me descobrindo capaz de fazê-lo. E mais, a galera gostava e eu me descobria ali um cantor profissional, porque era num bar que recebia um público que pagava, embora não cobrássemos do Zé (se cobrássemos não duraria dois anos). Formamos uma verdadeira confraria, irmanados sob um único objetivo: a devoção pela música e pela amizade.

Em pouco tempo criamos um point mais que bem sucedido pela popularidade. O som rolava todas as sextas às 8 da noite e ía até onde aguentavam as nossas forças e nosso tesão: quase sempre às 2h da manhã e durou de 1993 a 1994. Atualmente, em época de super exposição, sinto não ter sequer uma fotografia da gente no bar ou uma fitinha cassete que seja. Ficou somente na memória de quem viveu aqueles momentos. Foi um grande barato e que devemos ao empreendedorismo do Zé Renato, meu grande amigo que se foi e a quem dedico a música “Clube da Esquina 2” que ele gostava muito e que me remete a um desejo de renovação, porquanto, apesar do tempo não parar, os sonhos nunca envelhecem. Perdoem-me o lugar comum, mais é a mais pura verdade.




Clube da Esquina 2




Não se apague esta noite - Lo Borges






Serviço:

Pink Bar
Rua São Januário, 311/loja - São Cristóvão
Proprietário: José Renato Farias
Happy Hour: MPB ao vivo
Assis – Voz
Luiz Claudio – Violão
Mirinho – Percussão
Canjas dos amigos
Todas as sextas-feiras a partir das 20h.
Couvert opcional (sempre doado ao bar)
Cerveja gelada, bebidas diversas
Petiscos variados bem servidos







domingo, 1 de dezembro de 2013

O que faz de uma música um clássico: Clube da Esquina 2

A história da música popular brasileira está recheada de casos que contam o surgimento de obras que vieram a se tornar grandes clássicos. Algumas já nasceram assim, enquanto outras contaram com algumas conjunções que colaboraram para o resultado final. No samba, por exemplo, as histórias das parcerias e dos temas escolhidos, são deliciosas. Tanto a música quanto a história que a conta fazem parte do produto que o consumidor vai curtir como um grande conjunto da obra. 

Outro dia, de manhã, a caminho do trabalho, ouvi no rádio “Clube da Esquina 2” cantada pelo Milton Nascimento e me lembrei de sua história, que graças a sua publicação em um livro, pude tomar conhecimento. O livro é “Os sonhos não envelhecem – Histórias do Clube da Esquina” de Marcio Borges (já comentado por aqui).

Bem, essa música em questão é cercada de fatos e referências especialíssimas. E vou começar a história do porquê dessa composição ser um clássico desde o começo.

Essa música foi composta, inicialmente, por Milton Nascimento e Lô Borges e era somente instrumental. Não tinha letra. Foi intitulada com o nome do movimento musical mineiro, já reconhecidamente importante na época. Era “2”, pois ambos já haviam composto “Clube da esquina”, gravada no disco “Milton” de 1970. Este disco registrou entre outras, “Para Lennon & McCartney” e já falei um pouco dele num outro post. Portanto, a segunda música em homenagem ao clube já tinha uma história no seu próprio nome.

Clube da Esquina 2
A versão (instrumental) da música foi gravada no LP “Clube da Esquina”, de 1972, disco antológico (talvez o mais importante da carreira do Bituca) e que teve sua autoria dividida com Lô, então um jovem de apenas 18 anos. Sem contar que a música por si só é muito boa, só essa história já seria suficiente para torná-la um clássico: uma música, cujo título é o mesmo de um dos mais cultuados discos da MPB, no qual foi gravada. 

Só que a história não acaba aqui. A história começa aqui e é cheia de ingredientes hilários e marcantes tanto pelo seu tempo, quanto pelos personagens envolvidos. Marcio Borges nos conta em suas histórias do Clube da Esquina no seu livro supracitado, que ao final dos anos 1970, estava na noite da zona sul, no bar Diagonal do Baixo Leblon, no Rio, quando encontrou com Nana Caymmi, que ao vê-lo, bradou em alto e bom som, indagando-o o porquê de o moço não escrever uma letra para o “Clube da esquina 2”. Disse que achava a música linda e que queria gravá-la, mas a música não tinha letra. A primogênita de Dorival estava determinada a convencê-lo. Vale transcrever a narrativa do autor, porque relatos sobre Nana Caymmi são sempre imperdíveis: 


“- Ô seu porra, porque você não mete uma letra no “Clube da Esquina 2”? – Foi dizendo. (Esse era o instrumental criado por Lô e Bituca tempos atrás, no qual todos nós queríamos pôr letra, mas os dois nunca deixavam (“senão deixava de ser instrumental”). – Eu quero gravar essa merda mas sem letra não dá, né, porra.

Nana boca pesada. Pois bem. Naquela noite no Diagonal, Nana me convenceu a colocar letra, mesmo sem o conhecimento daqueles dois panacas (ela não disse panacas, evidentemente), pois afinal eu não era um bobo medroso (ela não disse bobo medroso) e ela própria mostraria a droga da letra (não disse droga), era só colocar aquela pinóia (nem pinóia) na mão dela e os dois que se... (claro que disse o termo).” (Borges, 1997)


Marcio foi pra casa e obedeceu ao pedido, ou melhor, à ordem e escreveu a letra à revelia dos irmãos branco e preto.

“Porque se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
Nem lembra se olhou pra trás
Ao primeiro passo, aço, aço, aço...”


Nana Caymmi, 1979
Em 1979 a cantora gravou em seu disco. Nesse mesmo ano, depois de 7 anos sem gravar, Lô Borges lança o LP “A via láctea”, para muitos seu principal disco solo. Nele, Lô gravou não somente “Clube da Esquina 2” (afinal, também ele pôde cantá-la), como outras tantas que o afirmaram como grande expoente do movimento do Clube como da própria música popular moderna feita em Minas Gerais e que chegava nos grandes centros do Brasil, como Rio e São Paulo com grande impacto. Não chegava a ser popular, longe disso. Mas, era bem recebida pela crítica especializada e por músicos importantes e, principalmente, por um público jovem descolado, que ainda acampava e cantava aquelas músicas ao som das violas, ao redor de fogueiras, sob a inspiração hippie, ainda um pouco presente. Era o tempo da abertura política e esses jovens acreditavam numa reviravolta político-social, numa nova época de liberdade. As músicas falavam fundo junto a essas aspirações.

A Via-Láctea, 1979
A canção, desde então, se tornou clássico pela segunda vez. Ela é um clássico instrumental no disco de 1972, de Milton em parceria com Lô, e também com letra, nos discos de Nana e de Lô, ambos de 1979. Mais tarde, foi gravada por vários artistas importantes.

Resumo da ópera: se não fosse a obstinada e mandona Nana, talvez a música fosse até hoje um instrumental que somente alguns curtissem, porquanto, embora linda, nem todos gostam de música instrumental. 

A história de uma música passa por isso que vimos: o disco no qual foi gravada; o tempo em que foi gravada ou composta; os artistas que a compuseram entre outras coisas.

Se fosse o Zé das Couves que pedisse ao poeta uma letra; se fosse outro músico que a escrevesse; se fosse outra época, enfim... A Nana é Caymmi, o Marcio é Borges, os anos eram os 70, os primeiros autores eram nada mais nada menos que Lô e Bituca. Não tinha como dar errado. Viva a Nana!


Clube da Esquina 2 c/ Nana Caymmi




                    .........................................................................................................................

BORGES, Marcio. Os Sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da Esquina. 2ªed. São Paulo: Geração Editorial, 1996.