quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Memória musical


As lembranças mais claras que tenho dos tempos passados são, em geral, lembranças ligadas a algum tipo de som musical.
Com as do tempo da Escola João de Camargo acontece igualmente. Alguns amigos já se surpreenderam com a minha memória especial. De fato, considero que tenha uma boa memória, porém associo essa facilidade aos recortes e filtros que todos fazemos daquilo que nos interessa. A tal da memória seletiva. A minha seleção passa, entre outros interesses, pela memória musical. É a que mais me auxilia no armazenamento das minhas lembranças.
Algumas lembranças são classificadas como memórias da pele, como aquelas que nos vêm pelo contato físico, não somente as de fundo romântico, mas tantas outras, como a lembrança de uma senha somente pelo tato dos dedos no teclado; um beijo especial de mãe ou de pai; um aperto de mão forte, etc. A lembrança passa por todos os sentidos, como o do tato, já citado, que possibilita o reconhecimento das faces amigas pelos deficientes visuais ou o do olfato, pelo cheiro do campo ou de um prato especial que marcou em algum tempo.
Uma música dos compositores Lô Borges e Ronaldo Bastos chamada “Uma canção” trata muito bem do poder de ligar alguém no espaço e no tempo. Ela fala que “uma canção tem cheiro e pode transportar uma fração de um tempo qualquer que a gente viveu num outro lugar”. Acredito que qualquer pessoa com sensibilidade mínima concordará com essa afirmação.
A memória musical guarda tanto cenas inteiras quanto frações mínimas de uma história, como as de uma ou duas notas tocadas. Até hoje, ressoa em minha memória o som das teclas de um piano, na sala Rotary, que ficava no pátio da João de Camargo. A sala havia sido um presente do Rotary Club e era separada do prédio principal da escola. D. Fernanda tocou de ouvido as notas do meu samba “Eu quero o meu enredo” que eu cantarolava para ela. É difícil descrever a alegria e a emoção de ouvir pela primeira vez o som da minha composição em um instrumento musical. A música ganhava uma beleza e uma importância que acabavam por afirmar a composição de fato. Agora era uma música de verdade. Devo a D. Fernanda essas memórias tão caras para mim.
Outro momento especialmente musical era o grupo de percussão, do qual fiz parte por pouco tempo, mas me lembro bem. O toque e o som dos pauzinhos nos arranjos criados e ensaiados pela professora Naila marcaram também minha forma de observar a música como um todo. Passei a conhecer o arranjo, a colaboração de muitos no resultado único da música apresentada: “Estrela brilhante, lá no alto mar... Olha macumbebê, olha macumbabá”. Ensaiávamos em meio a estantes de livros da biblioteca, lugar sagrado para muitos e que tinha em D. Naila a principal referência, o que tornava o lugar mais especial ainda. Era ela a grande fomentadora cultural da escola, seguida, é claro, pelos outros que estavam sempre dispostos a uma boa idéia.


8 comentários:

  1. Lô Borges tem para mim um significado especial.
    "Memórias da pele" foi uma excelente metáfora escolhida por você.

    Ouvi novamente a música e lembrei-me realmente de que "Uma canção tem cheiro e pode transportar".

    A sensação ao ler o seu texto foi a de que você realmente voltou ao espaço físico e cantou a sua música novamente com a professora ao seu lado. Esse é um dos aspectos que considero especial em seus textos: Viver as palavras com tal intensidade que nos permite viajar junto.

    Bjs!
    Parabéns!

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  2. Eu não tenho essa boa memória que você tem, infelizmente. No entanto, guardo muitos momentos especiais que sempre estão envolvidos com sensações. O mais marcante pra mim é o cheiro, a minha memória sempre está permeada de cheiros, de bolo, perfume, sabonete etc.
    Pude viajar com seu texto para o meu tempo de colégio também. Bons tempos! E pensar que a gente não via a hora de acabar, fazer 18 anos, essas coisas... (pelo menos foi assim comigo) Estava agora me recordando de uma poesia minha que também virou música. Legal essas coisas, né?

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  3. Legal sim! Bom seria ler e quem sabe ouvir essa poesia que virou música! valeu pelas palavras!

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  4. A Naila sempre foi especial! Aliás, a João de Camargo ganhou ares multicoloridos com sua chegada! Aquele grupo daquela época, Naila, Sidony, sua irmã diretora Dona Celeste, a professora de artes plásticas dona Maria de Lourdes, dona Regina Coeli, todos enfim... Podemos nos reconhecer privilegiados, por termos sido lapidados por tantos mestres valorosos! Eles nos incutiram uma visão grandiosa e responsável de nossos pensamentos, convicções e atitudes perante o universo!
    Na verdade, acho que nossa amada escola João de Camargo se tornou o nosso grande Clube da Esquina, de São Cristóvão - RJ/RJ! Essa união, cumplicidade, generosidade, a arte vibrante em nossas vidas... É Assis!... Acho que vem daí a nossa grande identificação com a energia dos nossos heróis musicais! É muita sensibilidade, e eles, interagem até hoje nos fazendo sentir eternos através de seus grandes sucessos!

    Que lindo!

    DEISE CORDEIRO CANDREVA

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  5. Deise,

    somente a cumplicidade, que temos daqueles tempos, nos dá a possibilidade de escrever em tal sintonia. É isso tudo que você falou mesmo. "O nosso Clube da Esquina"!!!

    Grande beijo!

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  6. Essa memória musical também faz parte de mim. Vivi e vivo ainda sob muitos acordes e Claves de Sol. Meu pai foi até muito severo com as músicas que ouvíamos. Até hoje ainda nos rege no "Parabéns para você..." (“tem que estar no TOM correto”)
    Foi muito bom ter passado pela musica através de meu pai.
    Ainda hoje consigo ouvir todos os 6 filhos cantando, em vozes, musicas inusitadas para a época.
    Foi muito bom você ter tocado nessa memória.
    Lindo texto!
    Parabéns

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  7. Sonia,

    todos nós temos histórias semelhantes e é isso que nos dá uma certa cumplicidade e quando lemos algo assim, nos sentimos felizes, pois lembramos as nossas experiências, como fez você.

    Obrigado pelos comentários amáveis!

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