terça-feira, 21 de dezembro de 2010

A poesia e o universo feminino

Outro dia estava pensando sobre a poesia e sobre o talento que os poetas têm de imaginar situações, sensações e sentimentos, inventando um mundo paralelo, no qual tudo é possível. Pensei na surpresa que alguns poemas nos causam pela originalidade.

O poema “Nas ruas” de Eliana Pichinine é um exemplo disso. Nele, Pichinine pressupõe ficar no espaço mínimo, entre as pedras portuguesas, os amores interrompidos. Seu curto poema resume uma imensidão de possibilidades de interpretação:


“Des(gastei) a solidão
andando
Nos contornos
das pedras portuguesas
teimavam as lembranças
de tropeços enamorados”

A imagem é bacana, pois o tropeço supõe a interrupção de um andar, consequentemente, a interrupçao de um objetivo. Somente uma mulher ou um poeta poderia parar para pensar em como e o quanto as pedras portuguesas podem reter do universo feminino. Na infinidade dos inúmeros tropeços, com seus altíssimos saltos, a mulher acaba por deixar naqueles espaços dores, revoltas, descuidos e, por que não, amores trôpegos. Fica a dor do tropeço como também a dor de amor. Um homem não pensaria em sentimentos deixados entre as lusas pedras. Não veria necessidade. Essas não nos dizem nada de especial, além de comporem, no imenso calçadão, as ondas da praia mais famosa do mundo.

Outro exemplo ímpar de imaginação poética é a música de Gilberto Gil, “Entre a sola e o salto”, gravada por Alcione no LP “Alerta Geral” de 1978. O compositor consegue imaginar o mundo e a imensidão no espaço entre a sola e o salto da mulher, provavelmente de tão alto que é. O gênio de Gil consegue ver ali naquele vão um abrigo contra o orgulho da ilusão, um espaço tão grande que cabe um coração. A visão de Gilberto Gil remete a um certo fetiche, fazendo do espaço singular um lugar de aconchego.


Entre a sola e o salto (Gilberto Gil)

Vê/ Por aquela janela/ Entre a sola e o salto do sapato alto dela/ Vê/ Por ali, pelo vão/ Entre a sola, o salto do sapato alto dela e o chão/

Vê/ Como existe um abrigo/ Entre a sola e o salto do sapato alto/ Contra o perigo do orgulho, da ilusão/ Basta um centímetro prum grande coração/ No espaço, ali embaixo/ Entre a sola e o salto existe a imensidão/

Vê/ Como cabe folgada/ A imensidão do olhar numa nesga de chão/ Num pedaço de calçada/

Vê/ Que há bastante lugar/ Prum coração chegar ali, ficar ali/ Passar dali pra acolá/

Ê, ê, quanto amor/ No espaço embaixo do sapato dela/ Ê, ê, quanto amor/ No abrigo embaixo do sapato dela/ Ê, ê, quanto amor/ No teto embaixo do sapato dela/ Ê, ê, quanto amor/ Na tenda embaixo do sapato dela/



Veja o vídeo de "Entre a sola e o salto"
Leia o poema "Nas ruas"

.

10 comentários:

  1. Assis,

    Tentei não ser prolixa, porém não deixarei de registrar aqui um agradecimento curto e denso, repleto de sinceridade. Sua segunda remissão a um poema de minha autoria é uma das formas de receber um abraço da vida.
    Sua trajetória é muito bonita e a generosidade é também um mérito seu.

    Sendo assim, não tive como não responder prontamente à sua reflexão sobre o universo feminino e a poesia.
    Abaixo, entrego pétalas de letras para que você as receba e possa lembrar-se da magia poética:


    Asas de Assis

    Menino talentoso
    Voz de sabiá

    Desafia a tristeza
    Acompanha andorinhas

    Visita colibris
    Indaga sobre a vida

    Brinca de voar

    No meio-fio
    alcança
    os vaga-lumes

    A lua
    bate palmas!!!

    Eliana Pichinine
    Rio de Janeiro, 22 de dezembro de 2010

    obs: Para acompanhar esse poema sugiro a música "Bola de meia, bola de gude" de Milton Nascimento e Fernand Brant (?) que deixei no facebook através de um vídeo.

    Bjs!!!!

    ResponderExcluir
  2. Eliana,

    não sei se mereço tanto. Essa é a segunda vez que sou homenageado com uma poesia. A primeira foi com uma música-poema do Alexandre Amorim (vc deve conhecê-lo, não?). Se chama "Segredo de Peixes" (Ele e eu somos pisciano). Qualquer dia publico por aqui.

    Essa segunda homenagem, depois de um intervalo tão longo em relação a primeira... Estava até desacostumado. Não sei o que dizer. Apenas sei que é muito bom ter criado o blog e poder escrever sobre qualquer assunto (relevante, é claro) e mais que isso, poder trocar impressões com outros amigos afins, como você.

    De fato, estamos criando um grupo (pequeno ainda), mas de qualidade e isso tem feito muito bem a mim.

    Sua poesia, agora em minha homenagem, é tão bela quanto as demais, cheia de lirismo e leveza. Obrigado pela gentileza.

    Mas, ora, não vá fazer uma poesia a cada duas citações ao seus poemas, pois poderia ser cansativo pra você, já que quero continuar escrevendo a cada vez que me inspirar e você é craque nisso.

    A música do Milton diz mesmo dessa solidariedade que temos dentro de nós e que devemos libertar sempre que os percalços (bruxas) aparecerem (assombrarem).

    Obrigado mais uma vez! Que Deus te abençoe!

    ResponderExcluir
  3. Bela sacada,Assis,em "A poesia e o universo feminino"! Como a obra é aberta,gostaria de registrar um ângulo de soslaio de "Nas ruas".
    Aí tocamos na sutil distinção entre gastar e desgastar."Gastar" nos leva à percepção de enfraquecer,esgotar,enquanto "desgastar" nos remete a um gastar pouco a pouco.Na poesia,nem um,nem outro.Antes:"Des(gastei)".Círculo vicioso entre poeta e a poesia.Andar:caminhar passo a passo,decorrer o tempo,está associado à solidão,palavra chave de "Nas ruas",que resgata com a "teimosia", o trazer da lembrança,da memória das palavras o fazer e refazer do encantamento.Assim,desliza, malgrado tropeços,gastos e desgastes,o poema ,resultante de andanças,"engenho e arte" de quem o compõe.
    Poema seria (sinal de igual),solidão?


    Assis,um homem como você,não "deixaria de pensar em sentimentos entre as lusas pedras."
    Por isso a necessidade do "homem poético" que assinala você.Gostei muito do seu comentário,sacada única!
    Beijos,
    Cida

    ResponderExcluir
  4. Essa é a Cida que eu conheço! A Cida das letras e portato, capaz de uma análise tão bacana e sofisticada como essa.

    A possibilidade de muitas interpretações é isso!
    Enquanto, me chamou atenção a imagem de tropeços enamorados e a observação de como a mulher lida com o tipo da calçamento, citado por Eliana, você foi mais além, fazendo uma crítica bastante competente da questão semântica das palavras usadas e seus sentidos, e, por aí tentar entender a autora, identificando um "círculo vicioso entre poeta e a poesia".

    Você é boa nisso e é por isso que eu te cobrava palavras em meu blog. Gosto de trocar esses colóquios contigo. Eu aprendo muito.


    E sobre a poesia do nosso ex-ministro? O que achou? Reparou em Pitágoras no "espaço embaixo do sapato dela"? Na trigonometria de Gil, a hipotenusa se dá na ligação do ponto mais alto do salto com a sola, numa inclinação tal, oposta ao ângulo reto, formado por sua vez, pelo cateto (salto) e pelo cateto (chão). Reparou que toda a imensidão imaginável "gilbertogiliana" se acomoda num mínimo triângulo retângulo. O antigo filósofo não faria melhor.

    Aliás, o Gil é um filósofo apaixonante! (ou não!)

    Obrigado pela contriuição. Beijos mil do seu amigão!

    ResponderExcluir
  5. Vou tentar repetí-la:estava eu dizendo,querido Assis,que Nao,não,não e não!!!Meu comentário sobre a poesia "Nas ruas" não foi sofisticado e muito menos competente ,como deveria ter sido.Como o seu,por exemplo.Enquanto eu fiz uma simples interpretação do texto,em uma estrutura simples,você abordou e fechou muito bem sua leitura,munido de elementos filosóficos ,sem desprezar o conteúdo poético.Foi um tiro no alvo,Assis,não é qualquer um que tem sua mira.Outra coisa,jamais chegarei a entender a autora,pois "o poeta é um fingidor..."
    Ahhh,quanto ao tratamento do nosso poeta-filósofo,Gilberto Gil,é muita elocubração pra mim...Eu,que sempre fui tão fraca na Matemática e na Lógica!!!! Só sei que (será que sei mesmo?) que "a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa"...E a pesquisa no estudo da letra da canção,me levou a consultar o Google eheheh O negócio é que realmente adorei seu comentário e também achei lindo as "Asas do Assis"!!,fiquei até com ciúmes,eheheheeh...Desculpe se estou muito desarticulada,pois tenho medo de perder de novo minha postagem,queria dizer que Gil é incomparável,a história do "triângulo retângulo",como eu já disse,é uma evocação de gênio!!!! Beijos,meu amigo,foi realmente uma bela sacação,seu comentário.Beijos da Cida!!!

    ResponderExcluir
  6. No poema da Elaine, como a Cida mesmo disse, o desgaste dos sapatos parecem ser aos poucos, os tropeços me parecem ser amores de teimosia, a gente sempre tropeça e vai deixando pedaços da sola dos sapatos (pedaços da gente deixado com os amores percorridos). Para nós mulheres, as pedras portuguesas, assim como os paralelepipedos, são inimigos e o inferno para nós é quando o salto fica preso entre as pedras, ou seja, os amores teimosos que nos prendem e fica quase impossível de largar. Sendo, às vezes necessário tirar o pé do sapato para conseguir desprender, portanto, requer às vezes distanciamento, separação, pra conseguir se desprender totalmente.
    Já sobre o espaço entre o sapato e o chão,a altura dos saltos enormes, geralmente temos a imagem do pisar, ser pisado, rebaixado, humilhado ou rendido, mas ele nos trouxe uma visão interessante, romanceada, cabe tanto amor naquele espaço...

    ResponderExcluir
  7. Oi Kátia,

    somente hoje estou relendo e agradecendo aos comentários super bem-vindos e inteligentes dos amigos. Você é um desses amigos que contribuem com qualidade.

    É muito bom poder ler interpretações ou recortes de textos como "Nas Ruas" e "Entre a sola e o salto" e enriquecer nosso olhar sobre esses adoráveis objetos de interesse: o pensamento do outro. Para os autores, então, deve ser muito gratificante.

    Obrigado pela participação! Bjs.

    ResponderExcluir
  8. Assis,

    Ainda sobre a discussão sobre hipotenusa, fiquei pensando...Depois de ficar na dúvida (já que não domino o assunto) se mostraria ou não o resultado da brincadeira de palavras, aqui está:

    Pitagoreando

    Hipotenusa
    e catetos
    convivendo
    num triângulo
    afetuosamente
    retangular :
    teorema revelado

    31/12/10,2/1/11 & 3/1/11

    Eliana Pichinine

    ResponderExcluir
  9. Eliana,

    adorei o poema matemático-romântico!

    O triângulo (retângulo) amoroso pitagoriano proposto por você deixaria o grego estupefacto.

    Ficou bem legal. Poderia ter mostrado ou postado antes. Bacana, poder transformar o que pra nós não é de todo particular em algo familiar, enquanto poema.



    Parabéns!

    ResponderExcluir