domingo, 3 de outubro de 2010

O confronto tradição-modernidade nos sambas de Donga e de Ismael


Donga, caricatura

Esse debate se observa na conversa entre Donga e Ismael Silva, a qual Sergio Cabral registrou em entrevista. Ismael contesta o primeiro sobre o que seria o samba Pelo telefone (de Donga e Mauro de Almeida). Segundo o bamba do Estácio, o famoso samba seria um maxixe. Donga, por sua vez, argumenta que Se você jurar (Ismael Silva e Nilton Bastos) também não é samba, é marcha (Apud Silva: 2001; pp. 69-70).

O samba de características próximas aos outros ritmos como o lundu ou o maxixe encontra suas raízes na ruralidade das fazendas dos séculos anteriores e estas, por sua vez, traduzem os modos da África distante. Já, a razão para a alteração da batida que seria feita pelos sambistas do Estácio, tem na urbanidade a sua explicação. Era preciso cantar e batucar em movimento de marcha. O samba estaria a serviço de um desfile e não mais somente nas rodas dos fundos de quintais. Esses conflitos são, de certa forma, naturais nos processos de modernização. Toda inovação gera desconforto e resistência por parte da comunidade que a recebe: a influência do estrangeirismo; as aspirações feministas de liberdade etc. são exemplos de inovações.

Carlos Sandroni, estudioso da música, fala em seu livro Feitiço Decente dessa transformação, considerando a síncope (que é a ligação da última nota de um compasso com a primeira do seguinte). A alteração rítmica é mostrada por ele nos seus detalhes fundamentais. O autor apresenta trechos das pautas musicais de Jura de Sinhô e de Se você jurar de Ismael Silva, explicando o que mudou. Segundo Sandroni, os sambas dos sambistas do Estácio, como este de Ismael, caracterizavam-se por uma pulsação rítmica mais complexa, agregando mais uma célula rítmica a marcação (Sandroni: 2008; p.32). A história da síncope foi explicada por Ismael Silva a Sergio Cabral de um modo mais simples e mais prático: “O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava (...) Aí, a gente começou a fazer um samba assim: bum bum paticumbum prugurundum...” (Apud Severiano: 2008; p. 120). 

Essa relação das duas gerações é encontrada em texto de Santuza Cambraia Naves para a Revista de história da Biblioteca Nacional. Intitulado Almofadinhas e malandros, o texto diz que “no começo do século XX, o samba nascia com o jeito bem comportado de compositores respeitáveis que dariam lugar a uma geração ligada à boemia, ao improviso e à malandragem”. A autora destaca que os músicos das comunidades baianas tendiam a um comportamento pequeno-burguês. Alguns eram funcionários públicos; tinham a simpatia de políticos; Tia Ciata tinha sua casa freqüentada por muita gente importante. 

Ismael Silva, caricatura
Enquanto que os sambistas do Estácio eram pobres, moradores de favelas, nos morros do bairro. Diferentemente da geração de Pelo telefone, que conhecia música e sabia tocar vários instrumentos, a do Estácio utilizava-se do improviso e de técnicas “primitivas”, se comparadas aos primeiros. A própria temática mudaria em relação à anterior: apareceriam as situações de orgia, malandragem ou vadiagem. No entanto, a geração mais pobre  e menos culta, musicalmente falando, modernizaria o samba pela sua inventividade rítmica (Naves: 2006; pp. 22-27).
 

  
Assista ao depoimento de Ismael Silva:

Obs.: Este artigo faz parte do meu trabalho de conclusão do curso de história do Instituto de Humanidades da UCAM.



Referências bibliográficas


NAVES, Santuza Cambraia. “Almofadinhas e malandros”, In:      Revista de história da Biblioteca Nacional. Ano 1, n° 8. Rio    de Janeiro: Revista de História, Fev/Mar 2006.

SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008.
SILVA, Marília Trindade Barboza da (Coord.). 500 anos, da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: MIS Editorial, 2001.



3 comentários:

  1. Legal perceber que a história da música está intimamente ligada à história da humanidade. Cada povo de uma maneira peculiar desenvolve sua musicalidade e um paradgma completa o outro.
    Acho esse encontro cultural que a música propõe fantástico!

    Muito bom! gostei bastante. abraço.

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  2. Caramba, não tinha lido este post, acabei escrevendo um que começa igualzinho... Essa questão social é importantíssima, e hoje se repete. Enquanto a classe média/alta formava grupos e mais grupos, revitalizava a Lapa e tal (nada disso ruim, óbvio), lá em Ramos, como cantou a Mangueira este ano, é que se processava a verdadeira revitalização do samba, que assumia um novo formato, com o Zeca, Almr Guineto, Fundo de Quintal. O bom é que o samba sempre acha um caminho, com a sabedoria da água que escorre onde é mais fácil. Grande abraço e viva o Donga, o Ismael e o Sandroni, que destrinchou o samba dos dois.

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    1. É isso aí Túlio,

      como disse Nelson Sargento, "Samba agoniza, mas não morre"!

      Sds.

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