domingo, 19 de junho de 2011

A colher estranha

   Quando éramos crianças, meus irmãos e eu passamos por uma experiência bastante interessante e importante para as nossas vidas.
   Morávamos em São Cristóvão e meu pai trabalhava em Bonsucesso e às vezes ia e voltava à pé para poupar uns trocados. Um dia ele chegou com uma colher que achou na rua no caminho de volta. Não era comum meu pai recolher algo que achasse na rua, mas dessa vez, pensando que tivesse algum valor,  resolveu  trazer o  objeto encontrado para casa. Se não me engano, pensou que pudesse ser de prata. Lembro que minha mãe não gostou, chegando a criticá-lo por trazer algo que não se sabia a procedência, ainda mais sendo um utensílio de cozinha e que serve para levar o alimento à boca. Depois de conversarem sobre o assunto, resolveram ficar com ela. Minha mãe lavou-a bem por muitas vezes e devagar ela foi sendo usada por todos.
   Lembro que para nós meninos, a colher não foi bem aceita, sendo batizada, "carinhosamente", por "colher estranha". Tínhamos um faqueiro muito bonito de inox que já estávamos habituados e aquela colher de tamanho um pouco menor, mais escura e pesada destoava mesmo, causando estranheza. Logo, transformamos o objeto em sujeito. Era a colher estranha que ninguém queria usar.

"_Ah! mãe, a senhora me deu a colher estranha. Não quero! Troque-a, por favor!"
"_A colher estranha, não. Não se esqueça, mãe!"

   Ficamos com medo e com receio de usá-la. Para nós, nosso jogo de talheres já era bem familiar, de modo que aquele talher intruso estava atrapalhando a harmonia importante da hora da refeição. Era sempre uma briga para não sermos escolhidos por ela, que por vezes, minha mãe nos obrigava a usar, quer por não ter outra à disposição (afinal, não tínhamos muitas colheres) ou para nos acostumarmos à ela. Mãe sabe bem ensinar!
   Foi difícil aquele "chororô" todo, mas com o tempo, fomos crescendo e reconhecendo uma certa beleza na peça, à medida que também nos familiarizávamos com ela. Sua diferença das demais acabou por marcar em nossa memória a sua importância histórica.
   A história da colher estranha serve de pararelo à muitas outras histórias de preconceitos quanto às diferenças. À medida que nos damos chance de conhecer melhor algo que nos é diferente, crescemos com isso; percebemos que aprendemos mais. E na mesma medida, nos tornamos cativos por essa novidade, ao passo que também cativamos o novo. 
   É assim com as amizades. Os amigos que vão se chegando aos poucos junto ao nosso convívio familiar, são parentes eleitos pelos nossos corações. É assim, quando adotamos uma criança como filho, quando dedicamos parte do nosso tempo e de nossos recursos aos que necessitam. Sempre nos tornamos presentes na vida desses amigos, como irmãos, pais ou filhos.
   Um tempo depois, todos já gostavam da colher e até reconheciam algo de especial nela. Afinal, ela tinha uma história especial, diferente das demais colheres, pois foi meu pai quem a trouxe para casa, resgatada do chão da rua para o nosso lar. 

   Depois, todos casamos, constituímos nossas famílias e a colher estranha está com algum de nós. Minha mãe mora comigo e talvez ela esteja em minha cozinha. Sei que até pouco tempo atrás, era peça de disputa entre todos que guardam essa história de inicial repulsa e que transformou-se em afeição por tudo que ela resume. 


13 comentários:

  1. Nesta vida é preciso mesmo estar atento as pequenas coisas para aprender as máximas!
    Tenho muitos amigos estranhos e bem diferentes de mim, e é exatamente isso que eu adoro !!! Eles me completam. Acredito que minhas estranhezas são admiradas por alguns, as vezes criticadas, mas pra mim, atualmente soam como elogios rsrsrs. É muito bom se dar o direito de ser diferente.
    Muito boa a sua reflexão antropológica sobre "A colher estranha ". Deixo aqui um pensamento de um amigo especial e com certeza diferente de todos nós. Graças a Deus.

    "A humildade exprime, uma das raras certezas de que estou certo: a de que ninguém é superior a ninguém."
    Paulo Freire

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  2. Tati,

    obrigado por suas palavras que resumem a minha intenção. Esta era mesmo a minha reflexão, que sempre serve como razão para eu contar umas histórias. Obrigado pela citação do Freire!

    Bjs.

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  3. Assis,

    Gostei acima de tudo da sua coragem de relatar uma história particular, pois através dela construiu delicadamente uma análise mais profunda e que está relacionada com a história mais ampla.
    Parabéns!

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  4. Eliana,

    algumas histórias antigas, do meu tempo de infância, marcaram justamente por terem proporcionado aos meus irmãos e a mim reflexões importantes para vida toda. Por isso, gosto de contá-las.

    Fico muito feliz por gostar dos meus relatos!

    Bjs.

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  5. MANO VC QUASE ME FEZ CHORAR LENDO A HISTÓRIA DA TAL COLHER ESTRANHA,SÃO COISAS COMO ESSAS QUE AJUDAM A FORMAR NOSSA PERSONALIDADE ME SINTO FELIZ,POR VC CONTAR ESSA HISTÓRIA,SÓ NÃO CONTE NADA DE COMO EU ERA KKKKKK O POVO NÃO PRECISA SABER COMO EU ERA MANHOSA.OU SOU ATÉ HOJE KKKK.BJS.

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  6. Rosana,

    sabia que iria gostar da histórinha contada. è uma forma mesmo de voltarmos no tempo e matarmos a saudade de uma época que marcou bastante nossas vidas. Fique tranqüila que não pretendo entregar ninguém em meus relatos.

    Bjs do maninho!

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  7. Todo mundo tem uma história p/ contar, felizes somos nós que temos algo p/ contar.
    Achei interessante, como uma colher fêz a diferença em uma pequena família e quantas reflexões puderam chegar.Tenho certeza que todos, temos algo, que marcaram em nossas vidas, que nos trouxeram aprendizados,amigos, agregados que não foram por acaso , enfim,depois de ler esta reflexão, concluo que a intenção é tudo

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  8. Grande Assis,
    Emocionante.
    Como algo que no início rejeitamos torna-se tão caro para nós? O pré-conceito realmente nos apequena. Como a colher da sua história, muitas vezes negamos uma aproximação, uma amizade, conhecer o diferente.
    Um grande abraço.
    Nelson

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  9. É verdade Nelson!

    Como é bom receber o reconhecimento dos nossos pares!
    Aquele sentimento que está tão intimamente guardado é imediatamente entendido pelos leitores atentos. Isso é muito gostoso, pois nos sentimos acompanhados.
    Essa sensação só se comapara ao início de uma nova e verdadeira amizade. Dar chance ao outro, ainda que diferente de nós, pode nos propiciar essa experiência de um novo amigo.

    Valeu, meu velho amigo!

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  10. Sonya,

    era exatamente esta a minha intenção: mostrar como pequenas coisas fazem a diferença e se quisermos, encontraremos significados nobres para simples casos.

    Obrigado pela visita!

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  11. Adorei seu texto sobre a “Colher Estranha”. Quem tem família grande sabe como são essas coisas.
    Há coisas tão simples, que na infância implicamos tanto e que passam a fazer parte da nossa própria história.
    Lembro que tínhamos um garfo de azinhafre (se é que é esse nome) e que ao usá-lo deixava em nossas mãos um cheiro desagradável.
    Ninguém o queria. Hoje “briga-se” para saber quem vai ficar com ele.
    Parabéns!
    Sonia

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  12. Às vezes somos nós, as colheres estranhas... Não é fácil destoar do faqueiro. Parabéns pela sensibilidade, Assis.

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