O Presente artigo propõe uma análise dos textos de época partindo das seguintes questões: Afinal, quem são os civilizados e quem são os bárbaros? Ou, o que vem a ser civilizado e o que vem a ser bárbaro. Esta é uma questão já discutida desde a Antiguidade Clássica. Os gregos consideravam todos os não-gregos como bárbaros. O Império Romano sucumbiu aos povos bárbaros, inaugurando, assim, a chamada Idade Média. Estava feita aí a vingança histórica com aqueles que haviam também dominado os gregos em tempos anteriores e, muito certamente, considerados por estes últimos também como bárbaros.
Deixando de lado o sentido formal e didático dos significados para os termos, essa leitura busca debater justamente a relativização dessa idéia, partindo do ponto-de-vista do sujeito em questão. E nesse caso, fala-se da China. Ela é o sujeito da história. Ela é quem vê os “bárbaros” chegando sem serem convidados. Como é forte a fala documentada do “outro”. Ler ou ouvir o lado de lá é sempre instigante. Saber que o outro pensa; que deseja; que sabe o que quer e o que não quer.
Diferentemente da fala do navegador europeu, que vê as terras das Américas e avista os “selvagens”, estes sem fala, a China é senhora de sua História. Um país com uma tradição milenar, que passou todo esse tempo voltado para si mesmo; auto-suficiente, tendo uma organização social e política magnífica; tendo conseguido domar a natureza, construindo meios de subsistência e construindo monumentos fantásticos, obviamente, se vê como o “civilizado”.
Isso é, impressionantemente, explicitado tanto na carta de 1816, do Imperador Jianquin para o Rei da Inglaterra George III, quanto na crítica de cunho moral, do mandarim Lin Zexu, enviada também em carta de 1839 à Rainha Vitória.
Da primeira, pode-se destacar o descontentamento do soberano com a postura dos enviados ingleses diante do protocolo chinês, como também, com a clara superioridade de sua fala, talvez proposital e irônica, ou mesmo, ingênua e pura, diante do real desconhecimento do poderio deste outro império:
“A Corte Celeste não tem por preciosos os objetos vindos de longe, e todas as coisas curiosas e engenhosas de seu reino não podem tampouco ser consideradas como tendo um raro valor. Você mantenha a concórdia entre seu povo, vele pela segurança de seu território, sem descuidar do que está afastado ou próximo. [...]
Daqui por diante, não será necessário enviar representantes para virem de tão longe e fazerem o esforço inútil de viajar por terra e mar. Saiba somente mostrar o fundo do seu coração [...] e podemos dizer então, sem que seja necessário que você envie representantes à minha Corte, que você caminha em direção à transformação civilizadora. É a fim de que você a obedeça que eu te dirijo essa Ordem Imperial.”
Daqui por diante, não será necessário enviar representantes para virem de tão longe e fazerem o esforço inútil de viajar por terra e mar. Saiba somente mostrar o fundo do seu coração [...] e podemos dizer então, sem que seja necessário que você envie representantes à minha Corte, que você caminha em direção à transformação civilizadora. É a fim de que você a obedeça que eu te dirijo essa Ordem Imperial.”
É clara a visão do Imperador chinês de que seu interlocutor é quem caminha ou deve caminhar para uma civilidade. Ou seja, bárbaros em ascensão.
A segunda carta é uma verdadeira lição de moral. Lin Zexu fala da China como legítima representante dos céus ou como sua própria tradução na Terra: a Corte Celeste. Fala da regra do Céu como eqüidade entre todos; que a Corte Celeste trata todos que vivem nos quatro mares como membros de uma grande família e que a bondade do Imperador é como o Céu, que cobre tudo. Mas, no entanto, chama atenção da Rainha para práticas perigosas e, portanto, indesejáveis que precisam ser coibidas. Desse modo, diz ter conhecimento da proibição do uso do ópio e das severas punições em seu país e que, sendo assim, seria compreensível e aceitável por parte de sua alteza o combate, não somente ao consumo e à venda, como também à produção do ópio em terras chinesas. Critica, abertamente, a Rainha quando diz que ela se mostra cuidadosa em relação à vida de seus súditos, mas continua a produzir o ópio e a incitar as pessoas da China ao seu consumo por ganância.
Esses documentos são, de fato, a expressão de uma superioridade que, embora bem colocada a quem se dirige, por sua arrogância de “senhora toda-poderosa dos mares”, deixam margem a leituras diversas, como esta sobre civilização e barbárie. Afinal, quem é quem neste jogo de egos e de poder? A verdade é que a China estava lá, quietinha há séculos e não precisava nem queria ninguém por perto. Será que ela não tinha esse direito?
Karl Marx, em "A Revolução na China e na Europa" de 1853, vaticina: “A primeira condição de preservação da Velha China era seu total isolamento. Uma vez que a Inglaterra deu fim brutal a esse isolamento, a decomposição sobrevirá com a mesma inexorabilidade de uma múmia retirada do hermético sarcófago em que estava preservada e exposta ao ar livre”.
Parece que Marx acertou em sua observação. O governo imperial chinês acirrou as relações de comércio ao ópio em seus territórios, impondo proibições, perseguições e causando a fúria do Império inglês que reagiu imediatamente no que veio a ser a Guerra do Ópio. A partir daí, a China conheceu o que era o Império que tanto subestimou.
Cabem ainda duas reflexões para ambos os lados: a Inglaterra usou mesmo de civilidade para com o próximo do Oriente? O “legítimo” representante do Céu na Terra, o Imperador Manchu, não era ele também um legítimo descendente de um povo invasor, vindo do nordeste?
Por Assis Furriel
Resenha do documento de época.
Em: CHESNEAUX,J. La Chine 1 (1840/1855). Paris: Haitier Université, 1969,pp52 a 53; 70 a 71
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“Quase tropecei
ResponderExcluirAbaixo de meus olhos
e ao lado
de meus pensamentos corridos”
Eliana Pichinine
http://versoseanversosfotogenicos.blogspot.com
“Afinal, quem são os civilizados e quem são os bárbaros?”
ASSIS FURRIEL
http://blogdochicofurriel.blogspot.com
“Quase tropecei”. Quantas vezes andamos pelas ruas de nossa vida sem ter o olhar para o outro. Subimos escadas, entramos em elevadores, abrimos portas, fechamos janelas, nos conectamos, mas não nos vemos. Fechamo-nos nesse pequeno mundo de nossa bem pequena existência. “Abaixo dos meus olhos e ao lado”, todos os dias, se procurarmos veremos as mãos, olhares, sonhos inacabados. Enquanto isso nossos olhos estão além da nossa alma, estão projetados para um infinito que mais parece um ponto projetado em uma tela com uma perspectiva limitada por essa nossa civilidade. “Meus pensamentos corridos” não nos permitem parar para refletir, algo que há muito não ousamos, algo que, com a velocidade das informações de nossa vida frenética, ocorre em poucos momentos, como ao ler uma linda poesia ou um belo texto como estes acima. ”Afinal , quem são os civilizados e quem são os bárbaros?” Que civilidade essa que nos corrói a humanidade? Que civilidade essa que nos faz cegos ao outro?
Nelson Marques
Nelson, meu amigo Neruda!
ResponderExcluirMuito bonita esta sua reflexão sobre nós e os outros que insistimos em não ver!
Obrigado pela participação e por sua contribuição neste espaço de pensar!
Grande abraço do Chico!