domingo, 22 de março de 2015

O artista, nós e o tempo



Foto: Alex Palarea
Este artigo é resultado de um debate com meu amigo Marcio Alves, músico e guitarrista de primeira, em comentários trocados no post de abril de 2013 no qual falo do último disco do Djavan, “Rua dos Amores”. Já deveria ter escrito esse texto desde então, mas outras prioridades foram tomando o meu tempo. Como recentemente voltamos à questão, resolvi publicar o que penso sobre o assunto: os clássicos ainda são possíveis? Nessa reflexão, veremos que uma série de fatores influencia diretamente na possibilidade ou não do surgimento de novas músicas ou mesmo discos inteiros que marcam uma época, como a idade do artista, interesses novos e influências que surgem através do tempo e, porque não dizer, a nossa própria noção do que seja um clássico hoje em dia; a nossa idade também que por vezes nos traz algum saudosismo, o que é bem comum e compreensivo. 

Nesse pequeno artigo que publiquei sobre o “Rua dos Amores” apresento o trabalho como o novo clássico do Djavan como há algum tempo ele não mais fazia. Ali explico os porquês. O fato é que o meu nobre amigo, apesar de ter achado o disco belo e bem feito, não achou tudo isso que eu disse e foi mais além, referindo-se a outros trabalhos antigos e que sem sombra de dúvidas foram e são obras referenciais da carreira do alagoano. Pois bem, fora o direito que todos temos de considerar bom ou muito bom, razoável, ruim ou muito ruim uma obra qualquer, e sendo música que é tão subjetiva, torna-se mais amplo ainda a opinião de quem admira, existe todo um conjunto de vivências, percepções, etc., que se interpõe entre o artista, o público e o tempo. Sim, o tempo é um elemento fundamental nessa abordagem para tentar entender a problemática.

Por que os artistas consagrados como Djavan, Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Edu Lobo entre outros não fazem tantos clássicos mais? Ou será que eles existem e nós não sabemos ou mesmo não os compreendemos? O que é um clássico? Em outro post comento sobre o que torna uma música um clássico. Ali, no final do artigo, escrevo que “A história de uma música passa por isso que vimos: o disco no qual foi gravada; o tempo em que foi gravada ou composta; os artistas que a compuseram entre outras coisas.”

Os artistas obviamente envelhecem e não poderão compor e produzir os mesmos trabalhos repetidas vezes durante 20, 30, 40 e até 50 anos, como no caso, por exemplo, de “Só me fez bem” de Edu Lobo e Vinícius de Morais. O Edu tinha menos de 20 anos e seu parceiro já era o famoso e cultuado Vinícius. Ainda que não fosse uma bela música, já seria considerada como um marco. E ela é belíssima, tem 50 anos e parece que foi feita ontem de tão moderna.

Nos comentários trocados com o Marcio ele nos fala sobre uma regionalidade que o Djavan tinha em suas músicas, o que é uma verdade que o próprio artista assume e que segundo meu amigo a modernidade com o passar do tempo foi apagando ou diminuindo. Bem, eu considerei que era uma verdade, mas não absoluta, visto que desde o início Djavan já era bem moderno, bem cosmopolita, citando algumas das primeiras músicas dele. Por outro lado, citando álbuns mais recentes, mencionei algumas de características rurais, nordestinas. 

É natural que o artista mude, evolua e ainda assim, mantenha suas raízes, seu estilo. Por exemplo, no caso desse artista, desde o início, Djavan procurou incluir ritmos diversos em seu trabalho, como os ritmos nordestinos, os sambas, as bossas, os funks suingados e jazzísticos e canções (estas últimas as minhas preferidas por sinal). Logicamente essas misturas foram se sofisticando à medida que o tempo passou e o artista foi conhecendo mais, viajando mais, como foi com o caso dos ritmos flamencos que a partir de “Malásia” tornou-se mais constantes. Se fizermos uma comparação com o ”Rua dos Amores” e alguns dos primeiros discos, será fácil notar essa assinatura plural do artista. 

Na conversa, acabamos por concluir que tal fenômeno se dá também com os demais artistas consagrados. O que é natural. Um dia tive a oportunidade de encontrar com Zélia Duncan e perguntei a ela porque não voltava com um show que eu adoro e que fugia muito da marca dela. O disco é “Eu me transformo em outras”, no qual ela gravou uma série de clássicos do samba e da canção tradicional brasileira e estrangeira. Como estava envolvido com o estudo do samba à época desse encontro, fiquei vidrado no disco, mas ela me disse que aquilo foi muito bom, mas que já tinha passado. Deu o que tinha que dar. Ela estava em outra e não pensava em voltar àquele trabalho. Eu entendi prontamente o que ela dizia. No mesmo momento quando falei do meu trabalho ela me perguntou por que não escrevia sobre a Tropicália, aí pensei comigo, pelo mesmo motivo dela com o seu trabalho. O meu interesse era o samba, o samba da antiga e a tropicália tem “trocentos” trabalhos feitos. Não que o samba não tenha, mas era o meu interesse no momento.

As décadas passaram-se, a política é outra (ruim ainda, mas outra), a sociedade mudou e nós envelhecemos. Conversando ainda com outro amigo, observamos que até o modo de ouvir música hoje em dia é outro. Antigamente, se marcava encontros especiais para ouvir em grupo discos novos de artistas consagrados. Lembro que me sentava ao chão da sala, ao lado da estante e ouvia em sequência cronológica todos os discos do Milton e do pessoal do Clube da Esquina que eu tinha. Lia a letra acompanhado o canto e olhava as fotos dos encartes adivinhando quem eram as pessoas, ou músicos etc. Eram outros tempos. Hoje ouvimos música de modo muito fragmentado. Ouvimos arquivos individuais, mp3 entre outros, nos ipods da vida, sem tempo de sentir e entender as mensagens poética e melódica das canções. Como então reconhecer um clássico na atualidade.

No meu caso, com o “Rua dos Amores”, foi no carro. Comprei o disco depois de ouvir no youtube uma música que me pegou de jeito que foi “Bangalô”. No começo não via nada demais mesmo, principalmente quando estava acompanhado, conversando. Mas fiquei bastante tempo com ele no carro e tive oportunidade de ouvi-lo sozinho muitas vezes. Aí aconteceu, uma a uma foi marcando em minha memória e à medida que ia decorando, mais eu gostava. Então, consegui perceber detalhes melódicos, poéticos, de instrumentos e arranjos que me confirmaram que ele havia voltado sim a um trabalho de fôlego e de qualidade especial. Moderno como sempre foi; sofisticado como não poderia de deixar de ser e iluminado como deve ser um disco que marca.


Djavan fala do disco






5 comentários:

  1. Olá, Assis!
    Embora não tenha ouvido mais detidamente o recente álbum do Djavan, imagino que deve ser excelente, dada a crítica que você fez. Não desconfio de seu bom gosto.
    Djavan é um dos maiores artistas da MPB de todos os tempos - arrisco dizer -, e é impressionante a sua capacidade de se reinventar, mudar para melhor. Não deixou de gravar músicas inéditas (fugindo do lugar comum de muitos artistas de sua geração que se limitam a requentar a obra), e mantendo sua voz, apesar de seus quase setenta anos. Lembro-me de seu disco de 1976 (talvez o primeiro) em que constavam Flor de Liz, Fato Consumado, etc. Sei de cor várias daquelas canções. E quantas outras ficaram marcadas em nossas memórias e corações? Inúmeras.
    Concordo quando você sugere que música boa é atemporal. Aliás, expressei a mesma opinião em minha crônica “Música de velho e outros romances”, no livro Sopa de Entulho.
    Certos álbuns de anos passados (os do Clube da Esquina, do Milton, do Djavan, "Tabua de Esmeralda" de Jorge Ben, “Acabou Chorare” dos Novos Baianos, por exemplo) foram feitos com muito esmero, imagino, daí serem tão cultuados. Ocorre, infelizmente, que com a vida corrida dos tempos atuais, fica difícil pararmos a fim de analisar uma obra musical com mais cuidado. Isto para falarmos de nós, amantes da boa música. O que dirá da maioria do pessoal? Daí a quantidade de músicas que mais parecem jingles. Nunca ficarão marcadas e nem influenciarão gerações.
    Tenho aprendido que arte, seja ela qual for, é um tanto de inspiração e muito de transpiração (um clichê, é verdade, mas retrata precisamente). Arte é trabalho e retrabalho, nunca termina. Veríssimo diz que o artista “não termina a obra, desiste dela”. Imagino que seja esta também a posição da Zélia Duncan, ao desapegar do espetáculo e partir para outra empreitada.
    Por fim, o parabenizo pelo excelente texto e deixo meu incentivo para que continue utilizando sua pena precisa e preciosa.
    Abraço,
    Rogério

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    1. Meu caro Rogério,

      Obrigado pela presença e por suas palavras cheias de verdades de quem viveu e apreendeu das coisas vividas.
      Agora, sem o Face, vou ter que correr mais atras dos amigos, como fiz nesse caso. Nem sempre farei isso, porque sei que encho o saco dos outros, mas quando for necessária uma avaliação dos amigos especialistas sobre temas como esse de tão difícil análise, pois falamos do artista, do tempo e de nós, farei contato pra ler o que esses amigos dizem sobre. Você, obviamente, é um desses. Obrigado pela participação especial!

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  2. Parabéns pelo sucesso do Blogger !Voce não enche o saco !Acho você de uma sensibilidade tamanha ,E fico feliz porque tenho em casa um cara como você !Feliz ano novo e viva o Chico !"Adoro Djavan"Beijos

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    1. Valeu, Rosana. Feliz ano novo pra você também. E obrigado por estar sempre participando aqui no blog. bjs.

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  3. Parabéns pelo blog. Escreveu com bastante propriedade sobre o assunto. O LP quando era lançado e logo adquirido, gostava de ver a ficha técnica, quem tocou, quem foi o músico convidado para participar e etc...era bem legal. Hoje você baixa o trabalho do artista em alguma plataforma digital, então essa essência ja não se têm mais,se perdeu. A outra, é a forma também de se fazer música, tá igual a fast food music,tem que ser feito e entregue rápido pra ser consumido rápido, não importando mais a qualidade da letra e da música. As letras tem que ser fáceis de decorar, acredito que a culpa também, são dos meios de divulgação, que estão mais preocupados em ganhar o vil metal, do que conteúdo. Um abraço grande

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