domingo, 1 de dezembro de 2013

O que faz de uma música um clássico: Clube da Esquina 2

A história da música popular brasileira está recheada de casos que contam o surgimento de obras que vieram a se tornar grandes clássicos. Algumas já nasceram assim, enquanto outras contaram com algumas conjunções que colaboraram para o resultado final. No samba, por exemplo, as histórias das parcerias e dos temas escolhidos, são deliciosas. Tanto a música quanto a história que a conta fazem parte do produto que o consumidor vai curtir como um grande conjunto da obra. 

Outro dia, de manhã, a caminho do trabalho, ouvi no rádio “Clube da Esquina 2” cantada pelo Milton Nascimento e me lembrei de sua história, que graças a sua publicação em um livro, pude tomar conhecimento. O livro é “Os sonhos não envelhecem – Histórias do Clube da Esquina” de Marcio Borges (já comentado por aqui).

Bem, essa música em questão é cercada de fatos e referências especialíssimas. E vou começar a história do porquê dessa composição ser um clássico desde o começo.

Essa música foi composta, inicialmente, por Milton Nascimento e Lô Borges e era somente instrumental. Não tinha letra. Foi intitulada com o nome do movimento musical mineiro, já reconhecidamente importante na época. Era “2”, pois ambos já haviam composto “Clube da esquina”, gravada no disco “Milton” de 1970. Este disco registrou entre outras, “Para Lennon & McCartney” e já falei um pouco dele num outro post. Portanto, a segunda música em homenagem ao clube já tinha uma história no seu próprio nome.

Clube da Esquina 2
A versão (instrumental) da música foi gravada no LP “Clube da Esquina”, de 1972, disco antológico (talvez o mais importante da carreira do Bituca) e que teve sua autoria dividida com Lô, então um jovem de apenas 18 anos. Sem contar que a música por si só é muito boa, só essa história já seria suficiente para torná-la um clássico: uma música, cujo título é o mesmo de um dos mais cultuados discos da MPB, no qual foi gravada. 

Só que a história não acaba aqui. A história começa aqui e é cheia de ingredientes hilários e marcantes tanto pelo seu tempo, quanto pelos personagens envolvidos. Marcio Borges nos conta em suas histórias do Clube da Esquina no seu livro supracitado, que ao final dos anos 1970, estava na noite da zona sul, no bar Diagonal do Baixo Leblon, no Rio, quando encontrou com Nana Caymmi, que ao vê-lo, bradou em alto e bom som, indagando-o o porquê de o moço não escrever uma letra para o “Clube da esquina 2”. Disse que achava a música linda e que queria gravá-la, mas a música não tinha letra. A primogênita de Dorival estava determinada a convencê-lo. Vale transcrever a narrativa do autor, porque relatos sobre Nana Caymmi são sempre imperdíveis: 


“- Ô seu porra, porque você não mete uma letra no “Clube da Esquina 2”? – Foi dizendo. (Esse era o instrumental criado por Lô e Bituca tempos atrás, no qual todos nós queríamos pôr letra, mas os dois nunca deixavam (“senão deixava de ser instrumental”). – Eu quero gravar essa merda mas sem letra não dá, né, porra.

Nana boca pesada. Pois bem. Naquela noite no Diagonal, Nana me convenceu a colocar letra, mesmo sem o conhecimento daqueles dois panacas (ela não disse panacas, evidentemente), pois afinal eu não era um bobo medroso (ela não disse bobo medroso) e ela própria mostraria a droga da letra (não disse droga), era só colocar aquela pinóia (nem pinóia) na mão dela e os dois que se... (claro que disse o termo).” (Borges, 1997)


Marcio foi pra casa e obedeceu ao pedido, ou melhor, à ordem e escreveu a letra à revelia dos irmãos branco e preto.

“Porque se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania
Nem lembra se olhou pra trás
Ao primeiro passo, aço, aço, aço...”


Nana Caymmi, 1979
Em 1979 a cantora gravou em seu disco. Nesse mesmo ano, depois de 7 anos sem gravar, Lô Borges lança o LP “A via láctea”, para muitos seu principal disco solo. Nele, Lô gravou não somente “Clube da Esquina 2” (afinal, também ele pôde cantá-la), como outras tantas que o afirmaram como grande expoente do movimento do Clube como da própria música popular moderna feita em Minas Gerais e que chegava nos grandes centros do Brasil, como Rio e São Paulo com grande impacto. Não chegava a ser popular, longe disso. Mas, era bem recebida pela crítica especializada e por músicos importantes e, principalmente, por um público jovem descolado, que ainda acampava e cantava aquelas músicas ao som das violas, ao redor de fogueiras, sob a inspiração hippie, ainda um pouco presente. Era o tempo da abertura política e esses jovens acreditavam numa reviravolta político-social, numa nova época de liberdade. As músicas falavam fundo junto a essas aspirações.

A Via-Láctea, 1979
A canção, desde então, se tornou clássico pela segunda vez. Ela é um clássico instrumental no disco de 1972, de Milton em parceria com Lô, e também com letra, nos discos de Nana e de Lô, ambos de 1979. Mais tarde, foi gravada por vários artistas importantes.

Resumo da ópera: se não fosse a obstinada e mandona Nana, talvez a música fosse até hoje um instrumental que somente alguns curtissem, porquanto, embora linda, nem todos gostam de música instrumental. 

A história de uma música passa por isso que vimos: o disco no qual foi gravada; o tempo em que foi gravada ou composta; os artistas que a compuseram entre outras coisas.

Se fosse o Zé das Couves que pedisse ao poeta uma letra; se fosse outro músico que a escrevesse; se fosse outra época, enfim... A Nana é Caymmi, o Marcio é Borges, os anos eram os 70, os primeiros autores eram nada mais nada menos que Lô e Bituca. Não tinha como dar errado. Viva a Nana!


Clube da Esquina 2 c/ Nana Caymmi




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BORGES, Marcio. Os Sonhos não envelhecem: Histórias do Clube da Esquina. 2ªed. São Paulo: Geração Editorial, 1996.


6 comentários:

  1. Assis,

    É sempre bom ler as histórias através de seu olhar.
    Beijão!

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  2. Eliana,

    melhor é ter amigos bacanas como você que lê e curte,

    Bj e obrigado.

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  3. Olha, Assis, você tocou num ponto importantíssimo na minha vida de violeiro diletante e amante da MPB.
    Nos anos 70, eu já era capaz de entender algumas coisas a respeito de música, mas ouvia Roberto Carlos, Jorge Ben (todos ótimos). Dos expoentes do Clube da Esquina eu conhecia o Milton (claro, pois era muito tocado nas rádios) e o Beto Guedes, que já fazia algum sucesso. Quando, no início dos anos 80, eu comecei a arranhar um violão velho, um amigo querido chamado Tadeu me "apresentou" ao Lô, do qual ouvira falar somente quando os radialistas davam os créditos aos compositores. Foi um descoberta! Que arranjos, que músicas maravilhosas! Me embrenhei em sua obra e, a reboque, na do Beto Guedes. Passei a ir a seus shows, tirar suas músicas e a castigar meus ouvintes com minhas performances. Hoje, ainda hoje, ouço-os quase que com uma reverência religiosa, esses caras que tanto me influenciaram e que , mesmo com sua produtividade um tanto escassa, ainda me influenciam e inspiram.
    Assim como você, meu caro. Eu que já era seu fã como pessoa e músico, agora também o eu por seus escritos e gosto.
    Um forte e fraternal abraço
    Rogério

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  4. Meu caro Rogério,

    é uma honra sua visita a esse humilde espaço de expressão, assim como também me alegra muito seu comentário, que aliás, é uma das razões de escrever: trocar ideias com os leitores. E olha que apareceram alguns muito bons por aqui. você só vem reforçar o quanto vale a pena essa troca.

    Escrever sobre o que gosto, sobre o que que mais me impacta é o meu objetivo: trocar essa vivência, construir uma memória daquilo que vivi ou vi. Obrigado por sua presença.

    A turma de Minas é isso. E olha que essa turma é apenas uma das coisas entre uma inumerável lista de gostos.

    Volte sempre. Aqui tem várias histórias que você vai curtir e também se identificar.

    Grande abraço.

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  5. Assis, sensacional!! Seu texto me remeteu direto para o pink bar e para a famosa calçada !! Rsrs.. Confesso que sempre estive mais ligado ao rock, pois fazia parte das bandas q vc citou no texto e q tocavam nas festas juninas, no clube 1o de mai e casarão, etc, mas confesso q aprendi com vc e meus primos Alex e Andrea Sarmento a gostar da MPB, da galera do Clube da Esquina e tantos outros.. Música boa sempre será música boa , independente do gênero .. Parabéns e obrigado por me proporcionar essa excelente lembrança Nostalgia no melhor sentido da palavra .. Abs

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    Respostas
    1. Alexandre,

      Desculpe-me pela demora na resposta. Não costumo ficar sem responder aos comentários. Mas, as vezes, esqueço e quando releio escrevo a resposta.

      Obrigado por suas palavras carinhosas. Que bom que tenha valido a pena toda a nossa história construída.

      Grande abraço.

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