sábado, 14 de setembro de 2013

O mito da democracia racial e a mídia

Uma breve introdução histórica

A história do Negro no Brasil inicia-se quase que simultaneamente ao descobrimento deste país. Já nas primeiras décadas do século XVI, os negros escravizados no continente africano eram trazidos para o ciclo econômico da cana-de-açúcar. “A partir de 1549, intensificou-se o tráfico negreiro para estas regiões, principalmente em razão dessa florescente cultura agrícola. Em 1559, o tráfico foi legalizado por iniciativa de um decreto do rei D. Sebastião, pelo qual ficava autorizada a captura de negros na África para o trabalho em território brasileiro”(ver ref. 1).

Segundo Nei Lopes(2), importante pesquisador e músico ligado às lutas pelos direitos de igualdade dos negros na sociedade brasileira, o deslocamento de grande contingente de negros acompanhou as mudanças desses ciclos econômicos. Primeiro com a lavoura da cana-de-açúcar, no nordeste, depois, já no século XVIII, com o ciclo do ouro, na Região das Minas e finalmente, com o período do café, no século XIX, no sudeste do país, sobretudo na região do Vale do Paraíba.

Na segunda metade do século XIX, vários fatores como a crise do café, a partir de 1860: a grande seca do sertão nordestino nos anos de 1877 à 1879; a abolição do trabalho escravo em 1888 e o término a Guerra de Canudos em 1897 contribuíram para que um grande número de negros e mestiços migrasse para as metrópoles, principalmente, a cidade do Rio de Janeiro, então capital do Império e da República que estava por vir, em busca de trabalho e de sobrevivência. Além disso, “entre 1871 e 1920, o Brasil recebeu 3,3 milhões de imigrantes, provenientes da Alemanha, Itália, Portugal, Ucrânia e Polônia”(3), para substituir a mão-de-obra escrava, e também para, segundo uma política “racista” do Governo do país e de grande parte das elites, embranquecer a população.

No caso do Rio de Janeiro, com a chegada da República e o desejo de dar à paisagem da cidade uma aparência européia, inicia-se uma política de embelezamento e racionalidade que consiste em abrir novas e largas avenidas, derrubadas de prédios velhos, os chamados cortiços, limpeza e saneamento das ruas do Centro. Desse modo, a população pobre, de grande maioria negra é obrigada a se mudar para as periferias, como as das regiões da Praça Onze e da Cidade Nova, como também a ocuparem os morros próximos, como os da Conceição, no bairro da Saúde e da Providência (morro da Favela), na Gamboa. A política urbanizadora do Prefeito Pereira Passos, inicia-se em 1902 e segue até 1906, a qual foi conhecida popularmente por “Bota abaixo”. Começa aí a história da “cidade partida”.(4)


Democracia Racial?

Apesar das dificuldades e extremas diferenças entre os vários níveis sociais, a convivência era uma real possibilidade. A periferia, nas primeiras décadas do século XX não era tão distante assim do centro da cidade e a chamada classe média da época convivia quase misturada aos mais pobres da cidade. Com a chegada dos anos 1930 e o início da “Era Vargas”, com sua proposta de modernização do país, a sociedade representada, sobretudo, por sua intelectualidade passa a pensar o Brasil, sua cara, sua gente. O conceito de brasilidade passa a ser perseguido e discutido. Nesse período é que o elemento negro ganha força. O samba passa a ser a música que mais reflete a nossa gente, o governo do Estado Novo passa, inclusive, a subvencionar os desfiles das novíssimas Escolas de Samba, incentivando os temas históricos, de cunho nacionalista. 

Nesse período, teses como a de Gilberto Freire ganha força. “O ideal da miscigenação adquire nova roupagem, segundo Martiniano J. Silva , com a obra "Casa Grande e Senzala", escrita pelo historiador e sociólogo Gilberto Freyre, passando a ser vista como mecanismo de um processo, o qual tem como fim a democracia racial. Segundo Clóvis Moura, Gilberto Freyre caracterizou a escravidão no Brasil como composta de senhores bons e escravos submissos. O mito do bom senhor de Freyre é uma tentativa no sentido de interpretar as contradições do escravismo como simples episódio sem importância, e que não teria o poder de desfazer a harmonia entre exploradores e explorados durante aquele período”(5).

“O morro não tem vez/ E o que ele fez já foi demais/ Mas olhem bem vocês/ Quando derem vez ao morro/ Toda cidade vai cantar”. Essas estrofes da música de Vinícius de Moraes e Tom Jobim de 1963, “O morro não tem vez”, denunciam que a voz do morro, daqueles compositores pobres e negros que criaram o “ritmo genuinamente brasileiro”, está esquecida e que esse mesmo contingente negro que teria atuado como o principal agente da formação de uma musicalidade respeitada internacionalmente, está sem vez. Essa denuncia evidencia o que a história da música brasileira conta como que, depois de um período áureo dos anos 1920 aos 1940, o samba e os seus artífices perdem valor na então nova indústria cultural. 

Quando tudo ainda estava em formação, a contribuição e a participação direta dos compositores e cantores negros foi fundamenal e aceita. Porém, a medida que uma classe média, formada por maioria branca, aprende a fazer samba, os compositores, ditos espontâneos começam a perder espaço na indústria cultural da época: gravadoras, rádios e teatros de variedades. “Noel Rosa, por exemplo, que começou a compor e a gravar sambas em 1930, quando morreu, em 1937 tinha 140 músicas gravadas. Cartola, que em 1928 levou à cera o seu primeiro samba, quando Noel morreu havia gravado apenas 9 sambas”(6). O texto continua afirmando ser compreensível que isso houvesse ocorrido: como um compositor simples, semi-analfabeto, sem qualquer articulação junto aos produtores culturais, “poderia concorrer com o doutor Ary Barroso, advogado, com o acadêmico de medicina, Noel Rosa, ou com o bacharel em letras Lamartine Babo?”(7)

Cartola, por exemplo, considerado pela crítica especializada como um dos maiores, se não o maior poeta do samba, nos anos 1940 caiu no ostracismo e foi encontrado após alguns anos lavando carros e trabalhando como porteiro em um edifício em Ipanema. Somente nos anos 1960 o samba e sua importância é resgatado para o bem da diversidade.


O novo mito da democracia racial e a mídia

O fotógrafo Januário Garcia(8), um dos principais ativistas dos direitos pela igualdade dos negros na sociedade brasileira, afirma em seu livro “25 anos do Movimento Negro no Brasil: “é por isso que reafirmo que nossos livros é que vão contar nossa História, porque nossa revolução, com certeza, não será televisionada.”

Januário está coberto de razão. Com a experiência de quem luta há tanto tempo pelo espaço democrático ao qual todos tem direito, como reza a constituição de um Estado democrático de direito, sabe que infelizmente, na prática esses direitos não são respeitados e aqueles que sofrem maiores preconceitos, como no caso da população negra, não conseguem espaço para mostrarem seu valor e para crescerem na sociedade em iguais condições.

Nenhum tipo de veículo de comunicão tem o poder comparável ao da televisão. Com a industrialização do país e a formação de uma sociedade de consumo, a TV a partir dos anos 1950 começa a tomar para si o poder da formação de uma opinião pública. O professor Dennis de Oliveira(9) da USP, em artigo da web cita o sociólogo Otávio Ianni que chama a mídia de “príncipe eletrônico”, referência ao “príncipe”, de Maquiavel, que seria competente em analisar as condições objetivas dadas (fortuna) para fazer valer a sua vontade (virtu). Ianni afirma que “a globalização, por exemplo, ocorre fundamentalmente pela circulação mundial de símbolos nas redes midiáticas, muito mais que pelas possibilidades de circulação de pessoas. Assim, a mídia não só exerce sua hegemonia ao apresentar determinadas posições e visões de mundo como dominantes, mas também por construir um cenário de tal forma que as possibilidades de exercício da política se restringem a ações que não contestem a ordem estabelecida”. Desse modo, a TV será sempre a salvaguarda dos símbolos que o sistema político defende. 

No documentário “A negação do Brasil” de 2000, o diretor Joel Zito Araújo faz um retrospecto da história das telenovelas no Brasil e aos papeis atribuídos aos atores negros. Os personagens são apresentados de forma estereotipada e negativa. O autor denuncia essa prática negativa, escondida sob o mito da democracia racial, e faz um manifesto pela inclusão positiva do negro nas imagens televisivas do país. 

O documentário pontua os estereótipos bem conhecidos como o de “mamãe Dolores”, interpretada por Isaura Garcia em o “Direito d Nascer”, de 1964-1065, um dramalhão de grande sucesso, no qual transparece um ideário da “grande mãe”, modelo norte-americano, visto em vários filmes de Hollywood. A atriz Isaura Garcia morreu na pobreza e esquecida pelo público. 

Em outro momento, mostra um dos grandes disparates da TV sobre o tema racial, a novela “A Cabana do Pai Tomáz”, de 1969, na qual o ator branco, Sergio Cardoso interpreta o personagem título Pai Tomáz, “cedendo a exigência dos patrocinadores. Com esta telenovela foi inaugurada na televisão brasileira o blackface, muito comum no início do cinema americano, onde os atores brancos eram pintados de preto, encarnando uma visão, uma imagem, pretensamente positiva que os brancos poderiam ter dos negros: o negro de alma branca, bondoso, serviçal e fiel. O blackface só lembra todo tempo ao espectador que a alma branca esta sob a pele negra (10)”

Nos anos 1970 prevaleceram as novelas cujas histórias apresentavam os negros em papeis subalternos e as do período escravista, mostrando os estereótipos da versão oficial de que a libertação dos escravos foi uma dádiva dos brancos. Nesse período as novelas “Escrava Isaura” e “Sinhá Moça”. “Entre 1980 e 1990, de acordo com Zito, houve algumas mudanças, em destaque, as representadas pela telenovela Corpo a Corpo, onde aparece uma personagem vítima de preconceito racial, Sonia, vivida pela atriz Zezé Motta. Estas duas décadas são consideradas pelo autor como um período de ascensão do negro na telenovela brasileira. No entanto, teria permanecido no mesmo veículo a construção de uma identidade de “branquitude” na sociedade brasileira, onde as imagens dominantes, em especial dos subtextos, reforçam o elogio dos traços ‘brancos’ como o ideal de beleza dos brasileiros”(11)

“Ao exaltar determinadas qualidades da população afrodescendente, o que a mídia faz não é avalizar a luta contra o racismo, mas demonstrar que é possível a superação do racismo nos marcos da sociedade liberal – mais que isto, que a sociedade liberal é a única forma de se pensar a superação do racismo. Por isto, ao lado da divulgação de dados que mostram as desigualdades entre brancos e negros, o que evidencia o caráter racista no Brasil, a mídia se posiciona contra as ações afirmativas e qualquer política específica de combate ao racismo. A neodemocracia racial midiática reconhece o racismo mas despolitiza-o e retira a sua componente estrutural, uma vez que é intocável o contrato social estabelecido dentro dos marcos da sociedade liberal.”(12)


(Este artigo foi feito em parceria com minha colega de turma Isabel Cristina Correia para uma disciplina transversal sobre comunicação e mídia)
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(1) Disponível em : http://ww1.universia.com.br/materia/materia.jsp?id=2852
(2) LOPES, Nei. Introção. In: O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical: partido alto, calango, chula e outras cantorias. Rio de Janeiro: Pallas, 1992.
(3) Disponível em: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/historia-da-populacao-brasileira/brasil-um-pais-de-migrantes.php
(4) Termo criado por Zuenir Ventura em seu livro “Cidade Partida” de 1994.
(5) Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Democracia_racial_no_Brasil
(6) e (7) SILVA, Marília Trindade Barboza da (Coord.). 500 anos, da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: MIS Editorial, 2001.
(8) GARCIA, Januário. 25 anos 1980-2005: movimento negro no Brasil = 25 years of the black movement in Brazil / Concepção, organização e fotografia Januário Garcia. – 2. ed. – Brasília, DF: Fundação Cultural Palmares, 2008.
(9) Disponível em: http://www.orunmila.org.br/blog/?p=72
(9) Disponível em: http://www.uff.br/mestcii/eliana1.htm
(10) Disponível em: http://www.uff.br/mestcii/eliana1.htm
(11) Disponível em: http://www.orunmila.org.br/blog/?p=72
[1] Disponível em: http://www.uff.br/mestcii/eliana1.htm
[1] Disponível em: http://www.orunmila.org.br/blog/?p=72

Um comentário:


  1. Muito bom Assis e Isabel Cristina grande abordagem sobre esse tema da " Democracia Racial " com aspas mesmo
    Januario Garcia

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