domingo, 28 de setembro de 2014

Nas vespas de uma inleição


Por Hilário Soneghetti


Eu tive a infilicidade
de tê nacido na roça,
im tarimba de paióça
e cumo animá crecê,
sem nunca tê visto um livro
onde pudesse aprendê.

Eu digo sem tê vregonha:
sô fio de anarfabeto.
Tudo é bronco na famía
dês do avô, ao pai, ao neto.

Só adispois que eu vim simbora
de lá daqueles fundão,
foi que eu vim sabê o que é uma enscrita
e tive um livro na mão.

Levei mais de vinte e um ano
só pra chegá a aprendê
a arrabiscá o meu nome
a assuletrá o a b c.

Mas a curpa num é minha,
nem mesmo dos meu maió
a curpa e só dos gunverno
que gunverna esta nação,
e se esquece dos que véve
interrado no sertão,
sem tê igreja, nem tê escola,
nem sabê o que é instrução.

Nós lá só sabe o que é bicho,
feitiçaria, coisa feita,
o que é mato, o que é miséria,
o que é espinhela, o que é maleita,
o que é frumiga saúva,
jararaca, opilação,
dô de baço, sarna brava,
reumatismo e assombração.
Tudo o que é ruim nós cunhece,
só num cunhece o que é bão,
só num sabe o que é instrução!
Mais uma coisa nós sabe
muito bem: o que é in-lei-ção!

Se o sinhô quisê que eu conte,
antonce preste atenção...

Mas, vosmecês me adiscurpe
se tudo eu num vô contá;
eu só vô falá nas vespas
da campanha eleitorá.

Muito antes da inleição
a gente vai, feito besta
in riba de um caminhão
a caminho do arraiá;
quando a gente chega lá,
tem povo que nem frumiga
ameaçando saí briga
num bate-papo inferná,
em tempo de se matá!

O dono dos inleitô
leva a gente pruma casa,
e disgraça a dá café,
e, adispois, outra disgraça:
enche a gente de cachaça
até mais num se aguentá!
E daí, num ribuliço
leva a gente prum cumiço,
mode orientá os inleitô.
E aí começa a falá:
Diz que nós sêrmo o partido
que o Brasí vai gunverná,
que vamo tê benefiço
do gunverno federá,
vai tê estrada, tê escola,
igreja, porto, hospitá,
adonde os cabôco todo
suas doença vai tratá
Nós fica tudo iscuitando
tanta promessa bunita,
e, mermo adiscunfiando,
naquilo tudo acredita...

Em cada canto da praça
vê-se um grupo de inleitô
no meio de cada um deles
com três ou quatro doutô
que veio lá da cidade
cada quá que fala, mais promete,
mais agrada, mais abraça,
cada quá que mais agarante
que a partí de hoje em diante
as coisas vai amiorá! 

O só vai sê mais briante,
tê mais luz nas claridade,
vai chuvê semente e arado,
inchada, foice, machado
e justiça e liberdade:
chuvê assistênci sociá,
veterináro, tratô,
framacia, banco, doutô,
que nós tudo vai curá.
Vai chuvê medicamento,
pomada, pilas, unguento,
fortificante, atebrina,
chuvê inté pinicilina,
tudo em grande quantidade...
E ainda os dotô agarante
cum a maió cuniquição,
que adispois das inleição
vai chuvê fricidade!

Seu moço num há quem aguente
cum tanta promessa boa!
A gente cai dereitinho,
que nem pato na lagôa...

Você num pode sabê
pruquê razão é que nós crê
nos home sem coração,
que nos faz tanta promessa
nas vespas de uma inleição!...



Essa poesia era declamada por minha tia Maria Ignácia nos meus tempos de menino. Lembro que meus irmãos e eu adorávamos ouvi-la e que ríamos muito do acento caipira que ela imprimia à sua declamação e ao mesmo tempo já percebíamos o lado crítico da história citada pelo autor. Saudades desse tempo mais lírico vivido em família...

Maravilha de poesia que revela a ingenuidade e a simplicidade de um povo sofrido e explorado historicamente pelas elites deste país desde sempre!  Cabe direitinho até hoje, não?



3 comentários:

  1. Muito legal e infelizmente ainda atual. Devia ser bem legal ouvir sua tia declamar.

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    1. Ah! Como era! Essas lembranças de infância com os irmãos e primos são tudo de bom. Família de artistas (rsrs...) sempre tínhamos o que inventar pra nos divertir. Tia Maria recita até e faz isso desde os 13 anos. Ela já tem quase 80.

      Bjs, minha amiga.

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  2. Eu consigo imaginar até a cena desses momentos, como num filme rs. São essas memórias que dão sentido a muitas coisas nas nossas vidas.

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