sexta-feira, 30 de março de 2012

Arranha-Céu: Zé Renato interpreta Sylvio Caldas

Arranha-Céu, o trabalho no qual Zé Renato homenageia Sylvio Caldas é talvez o disco mais maduro do cantor. Uma série de razões me leva a concluir que sim. Sua voz límpida e bela cantando uma série de canções e sambas do repertório do "Caboclinho Querido" cai como uma luva. Sua paixão pelo artista que frequentava a casa de seus pais (revelado por ele mesmo, em um programa de rádio) quando ainda era apenas um menino dá ao disco uma sinceridade, um afeto especial do cantor pelo homenageado que é facilmente percebido. Era, segundo o próprio Zé, um desejo antigo, cantar e gravar as músicas que o encantaram na sua infância. E Zé Renato não fez por menos. Escolheu um repertório de primeira, com clássicos como Arranha-céu (que dá nome ao disco), Faceira, Minha Palhoça, Mulher, Serenata do Adeus e a antológica Chão de Estrelas, entre outras. Tanto as melodias quanto as letras revelam uma poesia não mais existente nas canções atuais (não com essa força, essa pureza e este romantismo). Afinal, Sylvio Caldas era o rei dos seresteiros.

Versos como "Cansei de esperar por ela/ Toda noite na janela/ Vendo a cidade a luzir/ Nesses delírios nervosos/ Dos anúncios luminosos que são a vida a mentir", como já prevendo que se enganara em esperar o amor que não vem: "Cansei de olhar as reclames/ E dissse ao peito não ames/ Que o seu amor não te quer (...) Deitei-me então sobre o peito/ Vieste em sonho ao meu leito/ E eu acordei, que aflição/ Pensando que te abraçava/ Alucinado apertava/ Eu mesmo o meu coração", contidos em Arranha-céu de Sylvio Caldas e Orestes Barbosa e "Oh! mulher estrela refulgir/ Parte, mas antes de partir/ Rasga meu coração/ Crava as garras no meu peito em dor/ E esvai em sangue todo amor/ Toda desilusão", de Serenata do Adeus de Vinícius de Moraes ou ainda no fox-canção Mulher de Custódio Mesquita e Sady Cabral: "Mulher/ Só sei que sem alma/ Roubaste-me a calma/ E aos seus pés eu fico a implorar/ O teu amor tem um gosto amargo/ E eu fico sempre a chorar nesta dor/ Por seu amor/ Por seu amor/ Mulher" são de um romantismo que traduz um verdadeiro dramalhão. Temas, aliás, combatidos pela turma da Bossa Nova, que surgiria anos mais tarde cantando "o amor, o sorriso e a flor".

Mas Zé Renato canta com a maestria de quem conhece o tema desde de garoto e reverencia letra e música de tal modo que acabamos por megulhar nas imagens poéticas dos tempos antigos e nos deleitando com a viagem. Entretanto, não só de dores de amor se nos oferece o repertório. Sambas como Faceira, de Ary Barroso: " Foi num samba/ De gente bamba/ Que eu te conheci faceira/ Fazendo visagem/ Passando rasteira/ (Oi que bom, que bom, que bom)", um clássico do mineiro mais baiano da música popular nacional e Minha Palhoça de J Cascata, com o acompanhamento do violão e da voz de João Bosco, estão presentes, dando graça ao repertório. Zé dá alegria também ao disco, assim como em Como os rios que correm pr'o mar, de Custódio Mesquita e Evaldo Ruy que diz: "Os rios não voltam pr'o mar/ Meus olhos não deixam os teus/ E tu não vais me deixar/ Graças à Deus".
De todo modo, entre canções de amor e desamor e sambas faceiros, o tom do disco é mesmo, de certo modo, melancólico, mas que a suavidade do cantor do "Boca" faz soar belo e não trágico.
O trabalho de 1992 é um marco na carreira do compositor que depois gravaria outros CDs homenageando outros bambas como Zé Ketti, Noel Rosa e Chico Buarque. 
  
Chão de Estrelas, que deixei pra falar por último, tal sua importância é a música que na minha opinião fecha o disco de fato, por ser a última do CD e por ser o "crème e la crème". A música de Sylvio Caldas sobre a poesia de Orestes Barbosa contém versos antológicos, como "Nossas roupas comuns dependuradas/ Na corda, qual bandeiras agitadas/ Pareciam um estranho festival!/ Festa dos nossos trapos coloridos/ A mostrar que nos morros mal vestidos/ É sempre feriado nacional" e "A porta do barraco era sem trinco/ Mas a lua furando o nosso zinco/ Salpicava de estrelas nosso chão". Não à toa, Manuel Bandeira em uma crônica de 1956 diz considerar "Tu pisavas nos astros distraída" uma das mais belas frases da língua portuguesa.

A letra:

"Minha vida era um palco iluminado/ Eu vivia vestido de dourado/ Palhaço das perdidas ilusões/ Cheio dos guizos falsos da alegria/ Andei cantando a minha fantasia/ Entre as palmas febris dos corações/ Meu barracão no morro do Salgueiro/ Tinha o cantar alegre de um viveiro/ Foste a sonoridade que acabou/
E hoje, quando do sol, a claridade/ Forra o meu barracão, sinto saudade/ Da mulher pomba-rola que voou/
Nossas roupas comuns dependuradas/ Na corda, qual bandeiras agitadas/ Pareciam um estranho festival!/
Festa dos nossos trapos coloridos/ A mostrar que nos morros mal vestidos/ É sempre feriado nacional/
A porta do barraco era sem trinco/ Mas a lua furando o nosso zinco/ Salpicava de estrelas nosso chão/
Tu pisavas nos astros, distraída/ Sem saber que a ventura desta vida/ É a cabrocha, o luar e o violão"



guitarra de Victor Biglione

Zé Reanto ainda conta com um time de primeira, escolhido a dedo. O que torna o trabalho ainda mais especial, como podemos conferir na imagem abaixo:



3 comentários:

  1. Assis,

    Interessante comentário e análise muito bem concluída! O Caboclinho e Zé Renato merecem!
    Beijos da Cida.

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    1. Concordo, Cida!

      Você conhece o disco? É lindo!


      Obrigdo, pela participação! Que bom que gostou!

      Bjs.

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  2. Beleza, Chico. Realmente, este disco é onde dá para ver o amadurecimento do Zé. Não tinha visto o post quando escrevi sobre a Chão de Estrelas. Mas a gravação que gosto mais neste álbum é Mulher, que ficou com um arranjo elegantíssimo. A voz do Zé, sem floreios, mostra a melodia exatamente como é, e aí se vê melhor o quanto é uma composição refinada. De resto, isto vale para o álbum todo. Abração.

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