sexta-feira, 24 de julho de 2015

Casa de telha e tramela


Era de telhado e tramelas a casa em que nasci e cresci.

Frágil como a de palha dos “três porquinhos” e forte como a construída sobre a rocha de Jesus, era ali que vivi meus anos mais intensos e inspiradores. Foi lá que adquiri subsídios para nortear minha vida, quase nunca tão reta, porém cheia de desejos de correção no bem.

A vida, apesar das dificuldades, era séria, mas também mágica aos olhos de uma criança que sonha. As tramelas estavam em muitas casas da vizinhança e fechavam com a autoridade que lhes cabiam e ai de um intruso que tentasse corrompe-las. Não me lembro de nenhum que tenha tentado, a não ser numa emergência qualquer. Um dia meu pai teve que arrombar a janela do nosso quarto para entrar porque à noite, uma vela que estava acesa em cima do nosso guarda-roupas acabou por incendiá-lo. Mas, logo nosso super-herói nos salvou a todos devidamente.

O que mais me agradava em nossa casa de telhado era poder participar dos assuntos dos adultos à noite, quando já estávamos deitados pra dormir. Neste tipo de casa as paredes dos ambientes vão até uma certa altura e o telhado cobre toda a casa, deixando assim espaços abertos por cima das divisórias dos cômodos. Aqueles ruídos humanos noturnos hoje me soam como música de ninar. Vinham das pessoas que mais amo na vida; as pessoas que forjaram meu caráter, dentro de um ensino e uma prática baseados no Evangelho de Jesus, segundo a Doutrina Espírita. Aliás, a religião da família é uma outra história que não dá pra dissociar da história que conto, pois fez parte da família desde que me entendo por gente. Era comum nos dias de reunião pública na Casa de Jesus (Centro que frequentávamos e frequento até hoje), “continuarmos” a reunião na caminhada de volta pra casa e na cozinha de minha avó, enquanto tomávamos o seu café mineiro, discutindo mais sobre o tema da noite. 

Domingo pela manhã era o momento mais marcante dessa nobre casa de telhas e tramelas, pois que tínhamos também um pequeno quintal no qual nos reuníamos na hora do café para conversarmos sobre todo tipo de assunto, desde música popular brasileira, passando pela política, futebol e os próprios de família. Como morávamos juntos aos nossos avós maternos, neste dia vinham nos visitar os tios e primos e alguns chegavam mais cedo, o que fazia com que acordássemos com o burburinho. Então sentávamos nas cadeiras, na escada que dava acesso a terceira casa da grande casa de telhado e trancas de madeira (tramela), que era a casa de minha tia Terezinha. Então conversávamos ali, enquanto meu avô, meu pai e meu tio Ismael revezavam o pequeno espelho disposto na grade da escada para se barbearem. Era comum participarem desses momentos, além do meu avô Napoleão, meu tio Ismael, meu pai Manoel (Seu Dedé), meu irmão Moacir, meu primo Sergio (Nilo Sergio, filho da tia Ivete), minha tia Maria e também outros irmãos e irmãs menores, minha mãe Iolanda, minha avó Dêga (D. Orcina) outras tias que eventualmente apareciam. Lembro do Ismael cantando, imitando os cantores de rádio, como Nelson Gonçalves ou Orlando Silva. Meu tio cantava muito e acho que canta ainda. Acredito que herdei dele a mania de imitar os cantores. O Sergio também contribuía muito com seus conhecimentos científicos e culturais. Era e ainda é um intelectual que me inspirou bastante também. Escreveu uma vez uma crônica especial, muito bem feita sobre a árvore que havia em frente à sua casa, pois lera uma outra do mesmo mote de um tal Drummond, achando então que a árvore dele merecia também um texto igual. Com todo respeito ao poeta genial, a do meu primo também era muito boa.

O telhado também proporcionava um verdadeiro teatro de sombras às avessas. Na escuridão total da noite, a pouca luz que vinha de fora ou da própria lua, quando havia as cheias, enchia as paredes de imagens abstratas, através das frestas das velhas telhas, que eram imediatamente traduzidas em monstros e fantasmas dos mais diversos.

Como é rica a imaginação das crianças. Vida pobre, vida feliz. A felicidade decididamente não depende da riqueza necessariamente. Ela é uma conquista e um desejo que se transforma a partir de uma vivência especialmente boa. 

Saudades dos que se foram...