domingo, 27 de maio de 2012

A grande reforma urbana e as transformações culturais do Rio de Janeiro do início do século XX


Prefeito Pereira Passos
Pintura de Eliseu Visconti
Com o surgimento da República e dos ideais positivistas de ordem e de progresso, surge também uma elite burguesa forte e desejosa de uma modernidade com inspirações na Belle Époque francesa. A capital da República precisava se modernizar, perder de vez aquele aspecto colonial que tanto asco provocava nos homens que agora freqüentavam o centro da cidade, quer por seus negócios, quer pelo desfile da moda ou do comércio e do flanar despreocupado. Essas práticas requeriam, de fato, uma cidade urbanizada e limpa, de preferência, nos moldes parisienses.

A chamada Regeneração é a série de medidas tomadas pelo governo federal e municipal que pôs em prática esse desejo burguês: a necessidade de refazer a cidade. O prefeito Pereira Passos representou a principal figura dessa reforma que alijou de suas casas e de seus ambientes muitos habitantes, em sua grande maioria, pobres, negros e mestiços, que sem opção, acabaram por ocupar os morros mais próximos, formando o que viria ser as favelas ou mudando-se para os subúrbios, à época, regiões rurais, sem a mínima urbanidade. Como disse o médico e escritor Afrânio Peixoto: “os sertões do Brasil começavam quando terminava a Avenida Central, portanto, na periferia da cidade do Rio de Janeiro, capital da República” (Lima e Hochman: 1996; p. 37).

Manchete do Jornal do Brasil de 1903

O quadro urbano carioca do início do século XX apresentava-se, de fato, caótico e sem condições de atender às demandas dos empresários comerciantes, europeus que vinham à cidade em busca de novos negócios. O antigo cais não era capaz de atender aos grandes navios que não conseguiam atracar; as ruas estreitas e tortuosas dificultavam as conexões com o porto, os terminais ferroviários e os armazéns e estabelecimentos comerciais; as regiões pantanosas resultavam em todo tipo de doença contagiosa, como o tifo, a varíola, a febre amarela entre outras. Esse quadro, naturalmente, espantava os europeus que, receosos, recuavam ante a esses riscos. A política de embelezamento e racionalidade consistia em abrir novas e largas avenidas, na derrubada de prédios velhos, os chamados cortiços, na limpeza e no saneamento das ruas do Centro.

Morro da Providência: Anos 20
(morro da favela)

Desse modo, a população pobre foi obrigada a se mudar para as periferias, como as das regiões da Praça Onze e da Cidade Nova, como também a ocupar os morros próximos, como os da Conceição, no bairro da Saúde e da Providência (morro da Favela), na Gamboa. A política urbanizadora do Prefeito Pereira Passos, inicia-se em 1902 e segue até 1906, a qual foi conhecida popularmente por "Bota abaixo". 


Av. Central (antes)
Detalhe do Morro do Castelo
(acima, à esquerda),
posteriormente removido

 O marco inicial das práticas de regeneração da cidade foi a inauguração da Avenida Central e a promulgação da lei da vacina obrigatória em 1903. Junto à reforma urbana, foram realizadas as campanhas de higienização da cidade. Uma dessas campanhas foi a de extermínio dos ratos. Oswaldo Cruz determinou uma radical desratização e, para isso, organizou uma brigada composta por todo aquele que quisesse participar. Cada um dos participantes deveria apresentar cinco ratos mortos por dia. Os que trouxessem mais que este número eram gratificados por 300 réis por cabeça (Diniz: 2007; p.18).

Av. Central (depois)
 Nessa reforma, eram destruídos os casarões coloniais, considerados antros de sujeira e desordem, transformados em cortiços, onde se apertava boa parte da gente pobre da cidade. Em seu lugar, grandes avenidas, praças e jardins, tudo inspirado no modelo francês. Antes mesmo da grande reforma, observa-se que a República, recém chegada, apresentava como uma de suas características a prevenção contra pobres e negros, “prevenção esta que se evidencia principalmente na forte repressão aos capoeiras, levada a efeito em 1890 e na destruição (não sem violenta reação popular) em janeiro de 1893, pelo prefeito Bento Ribeiro, do “Cabeça de Porco”, o mais famoso cortiço do Rio de Janeiro, localizado na atual rua Barão de São Félix, nas fraldas do Morro da Providência, nos terrenos em parte cortados hoje pelo túnel João Ricardo, e que abrigava, à época de sua demolição, cerca de 1.000 pessoas” (Lopes: 1992; p. 5).

Em resumo, o plano urbanístico visava a remodelação do porto da cidade e das áreas próximas, facilitando seu acesso aos ramais da Central do Brasil e da Leopoldina; a abertura da avenida Rodrigues Alves e da avenida Central (atual Rio Branco) que cortaria o centro comercial e financeiro que seria também recons- truído e remodelado; melhoria do acesso à Zona Sul, que se tornaria definitivamente a região ocupada pelos mais abastados da cidade, com a construção da avenida Beira-Mar; e a reforma do acesso à Zona Norte com a abertura da avenida Mem de Sá e com o alargamento das ruas Frei Caneca e Estácio de Sá. Além disso, alargamentos de várias ruas e pavimentação e ampliação dos serviços urbanos como o dos transportes. O combate às epidemias, executado sob a liderança do Dr. Oswaldo Cruz, também marcaria profundamente essa fase (Moura: 1983; pp. 30-31).

Era preciso mudar não somente a estética arquitetônica da cidade, mas os hábitos de sua gente. Portanto, costumes ligados ao modo da sociedade tradicional do século passado, elementos de cultura popular, a boemia, o violão e o pandeiro, a capoeira, o batuque e o candomblé, de características africanas, eram
condenados e perseguidos pela polícia. Uma política de expulsão dos grupos populares da área central foi implantada, assim como um “cosmopolitismo agressivo profundamente identificado com a
vida parisiense” (Sevcenko: 1983; p30).

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(Monografia (parte) “SAMBA E MODERNIDADE - O samba como agente transformador na primeira metade do século XX” de 2010, de Francisco de Assis Furriel Gonçalves)

Bibliografia:

DINIZ, André. Almanaque do samba: a história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

LIMA e HOCHMAN. “Condenado pela raça, absolvido pela medicina: O Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República”. In: MAIO, Marcos Chor (org). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996 (cap.2)

LOPES, Nei. O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical: partido alto, calango, chula e outras cantorias. Rio de Janeiro: Pallas, 1992.

MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira república. SP: Brasiliense, 1983. (cap.1)


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