É possível fazer várias abordagens sobre uma obra, ainda mais se ela for uma ótima obra como é o disco ao vivo de Roberta Sá. Pode-se falar da beleza do trabalho apontando a linda voz do artista, o apuro da gravação, a elaboração dos arranjos, a técnica dos músicos, a escolha do repertório etc. De certo modo, falarei um pouco disso, porém focando aquilo que mais me chamou a atenção que é a sonoridade que dá uma atmosfera especial ao trabalho. Aliás, essa tal de atmosfera sempre me prende mesmo, pois pra mim revela a intenção do autor.
Em “Pra ser ter alegria” (disco gravado em abril de 2009, a partir do show (DVD) de mesmo nome), tem-se a forte impressão que a cantora presta uma homenagem à música dos anos 70, sobretudo ao samba. De cara, o disco abre com a música “Pedido”, de Junio Barreto e Jam da Silva, cujo arranjo lembra as raízes ibéricas as quais somos também herdeiros. No DVD essa abertura é bem marcante pela cena de palco que traz a cantora com um vestido carmim, movimentando apenas os braços. O efeito funcionou bem. A segunda música, “Alô Fevereiro”, de autoria de Sidney Miller, é um samba gostoso gravado anteriormente por Dóris Monteiro em 1972. Portanto dois clássicos: autor e cantora. Roberta começa bem a sua homenagem e sua deferência a um tempo. Lembro-me de ter escutado bastante esse samba nos anos 70 na voz da vascaína roxa, Dóris.
A sensação de estar ouvindo coisas que remetem àquele tempo e ao som do início daquela década continua na série de sambas de ritmos marcados como os típicos sambas de roda, gênero que os sambistas do final dos 60 e início dos 70 resgataram. Pode-se imaginar uma roda de samba, num terreiro e a marcação feita pela palma da mão, como eram caracterizados os sambas do início do século XX. Segue-se então a ótima “Interessa?”, de Carvalhinho e “Mais alguém”, da dupla Moreno Veloso e Quito Ribeiro. A primeira, de ritmo bem forte é muito boa e nos convida a dançar, enquanto a segunda, mais cadenciada, também chama atenção pela beleza. Esta última, por sinal, tocou bem nas rádios. Mais pra frente, encontramos a deliciosa “Ah, se eu vou”, de Lula Queiroga, “Girando na renda”, de seu “maior parceiro” Pedro Luís, Sergio Paes e Flávio Guimarães e “Laranjeira”, de Roque Ferreira. Todas, claramente, de fortes influências de um tempo que se quer homenagear. É difícil detalhar mais profundamente o que se deseja observar quanto a sonoridade, pois o próprio som revela melhor esse detalhe do que as palavras. As composições são bastante semelhantes às que se faziam naquela época. Mesmo a impostação de voz e a postura de Roberta (que embora seja bem jovem, canta como uma diva do samba) revelam seu gosto e sua admiração por sambas desse tipo.
Outro samba que lembra bem os clássicos é “Agora sim”, de autoria da própria cantora com Pedro Luís e Carlos Rennó. Um sambão pra lá de bom, como os sambas dos grupos de velha-guarda. O disco ainda traz outras ótimas músicas, entre as quais “Pelas tabelas” (esta dos anos 80) de Chico Buarque, outro craque já citado outras vezes neste blog.
Pra fechar com chave-de-ouro, outra composição do seu “maior parceiro” e porque não dizer, marido, Pedro Luís (da Parede e do Monobloco): “No braseiro”. Esta música foi a que mais me chamou a atenção quanto as referências nela contidas e percebidas. A primeira referência remete ao samba “De frente pro crime”, da dupla João Bosco e Aldir Blanc. Na música, a frase “Tão vendendo ingresso pra ver nêgo morrer no osso/ Vou fechar a janela pra ver se não ouço as mazelas dos outros” lembra ou quase explica a história da música de Bosco e Blanc que diz “Olhei o corpo no chão e fechei minha janela de frente pro crime”. A ideia de vender ingresso pra ver as desgraças é uma ideia contida na música da dupla também. Nela, os autores mencionam a prática popular bem típica do povo que é a de tirar proveito das aglomerações. Diante de todos que se juntam para ver o corpo morto, chegam camelô vendendo anel, cordão e outras coisas mais; baianas vendendo pastéis, sem contar políticos que se aproveitam para discursarem. Em "No braseiro", até na parte declamada, a cantora homenageia vários artistas, citando músicas dos anos 70, como "Disritmia" de Martinho da Vila, "Questão de posse" de Luiz Melodia, "Tatuagem" de Chico Buarque entre outros. Exceto "Irene", de Caettano Veloso e "Na cadência do samba", de Ataulfo Alves e Paulo Gesta da década anterior, todas as outras menções são dos anos 70.
A música ainda fecha com uma outra coincidência, que acredito seja outra homenagem, o vocalize final “ÔOOOÓ ÔÓOOOOO” lembra muito o mesmo vocalize de Clara Nunes no final do “Canto das três raças”. O mesmo canto em tom menor, típico dos cantos de lamento. Com mesma divisão e semelhante construção. Conhecendo a admiração da menina pela musa "Guerreira", é bem capaz de ser verdade.
A música ainda fecha com uma outra coincidência, que acredito seja outra homenagem, o vocalize final “ÔOOOÓ ÔÓOOOOO” lembra muito o mesmo vocalize de Clara Nunes no final do “Canto das três raças”. O mesmo canto em tom menor, típico dos cantos de lamento. Com mesma divisão e semelhante construção. Conhecendo a admiração da menina pela musa "Guerreira", é bem capaz de ser verdade.
Essas observações, longe de menosprezar o trabalho, dão o caráter de homenagem a um tempo importante e a uma sonoridade que ao passo que é histórica, permanece atual. O disco é muito bom e muito bem feito. Roberta Sá tem uma voz potente e bela. Sua presença de palco também é bastante interessante para o seu pouco tempo de estrada.
É o novo olhando para trás e repaginando com muita competência o samba tradicional, modernizando um estilo que não envelhece nunca.
No braseiro
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