domingo, 31 de julho de 2011

Morro Velho, o "menino de engenho"* de Milton Nascimento


Morro Velho  (Milton Nascimento)

No sertão da minha terra, fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força, parece até que tudo aquilo ali é seu
Só poder sentar no morro e ver tudo verdinho, lindo a crescer
Orgulhoso camarada, de viola em vez de enxada
Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atrás de passarinho
Pela plantação adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos
Peixe bom dá no riacho de água tão limpinha, dá pro fundo ver
Orgulhoso camarada, conta histórias prá moçada

Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande
Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estação distante
Não esqueça, amigo, eu vou voltar, some longe o trenzinho ao deus-dará

Quando volta já é outro, trouxe até sinhá mocinha prá apresentar
Linda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como lá
Já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar
E seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha.





(*) Menino de Engenho: romance de José Lins do Rego

.

sábado, 30 de julho de 2011

Poesia de Cida

                               Fole                               

                               Abraçado no meu peito
                               em encaixe de aconchego
                               de mim não te soltavas
                               respondendo aos meus apelos.

                               Quando a pauta assim ditava
                               em meus braços te encolhias
                               e abafando suspiros loucos
                               dissimulavas que rias...

                               Se te abrias em sorriso largo
                               o meu colo também te recebia
                               em desvarios de acordes vários
                               inspiravas ternas melodias.

                              Chegou um dia,
                              -tudo passa
                               até a folia do vento
                               até a onda bravia-,
                               Teu fôlego em desacordo
                               atravessou o compasso
                               em súbita arritmia.


                               Da platéia,-em vaias solenes-
                               até hoje procuro abrigo
                               Teu abraço
                               soltou meus braços
                               que pendem, mesmo sem hastes
                               configurando o imenso vazio.


                            
                               Em gritos roucos canto sozinha
                               "Je suis folle,folle,folle"!

                                                           

para a Kátia Silva

                                                     Poema de Cida R. Barreiros - 21/04/2011


                                                                                                        
.

                         

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Poema de Adélia


Briga no beco


Encontrei meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mão e palavras
que nunca suspeitei conhecesse.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida, uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.
Qunado não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.
Desde então faço milagres.

Adélia Prado, do livro Bagagem, 1976

.

domingo, 10 de julho de 2011

Vovó Amélia: uma história de amizade, escravidão e liberdade


E lá vinha ela! Devagar, mas firme. Com jeito altivo de quem, do alto de sua idade, carregava a própria experiência.

No quintal de nossa casa, bem ao lado do portão de entrada, sentava-se na cadeira que minha mãe dispunha para as visitas. Ali, naquele pequeno espaço, muitos se revezavam em longos papos. Um desses amigos era ela, a Vovó Amélia. Naquela época, já contava mais de cem anos. Os mais velhos diziam que havia sido filha de escravos nos tempos da escravidão. Aquela história de escravidão era o máximo e para nós crianças aquilo nos enchia de imaginação e fantasia.

Lembro que minha mãe não admitia que ninguém fumasse dentro de casa. Mas, Vovó Amélia chegava, sentava-se naquela cadeira e logo acendia seu cachimbo que gostava de pitar. Minha mãe não dizia nada. Ela podia, pois além de ser uma visita, era especial e aquele era um velho costume seu. Ela era muito querida pelos meus pais e pelos meus avós, que moravam na casa ao lado e dividiam o mesmo quintal conosco. Vovó Amélia era uma espécie de conselheira da família e também contava muitas histórias.

A última vez que a vi, foi em sua cama, adoentada. Já não podia mais se levantar. Lembro-me de pedir sua benção e beijar sua mão. Naquele tempo ainda era assim.

Era uma figura marcante, quase mítica, a centenária Amélia!

..............................................................................................

Meu professor de História da África Edson Borges disse para nossa turma uma coisa que nunca mais vou esquecer. Ele dizia que não houve escravos e nunca haverá. O que houve foram indivíduos iguais a todos os outros que foram escravizados à força. Escravo é uma categoria que acaba por resumir uma série de outros conceitos, como objeto, por exemplo, que o escravizador algoz utiliza como quer, decidindo, inclusive, sobre sua vida e sua morte. Embora já tivesse essa visão, foi muito importante ouvir dele, que é negro, militante das causas dos negros e que tem o poder do uso da palavra, como um formador de opinião.

.

domingo, 3 de julho de 2011

A intertextualidade na obra de Caetano Veloso

Transa, 1972 - Polygram
A generosidade com que Caetano Veloso nos apresenta outros clássicos em suas músicas é muito legal. Ele sabe bem o que faz! Aliás, a genialidade de todo artista se reconhece, entre outras coisas, por esse altruísmo inteligente que mostra o fundamental, a todo momento, a quem importar. 

Caetano tem por marca essas citações em seu trabalho. Não apenas as referências musicais, mas tantas outras como as literárias, por exemplo, quando cita autores e suas obras relevantes. Um exemplo é Outro retrato (do disco "Estrangeiro"), na qual o compositor se refere a dois "Joões" (um poeta, outro músico) que, segundo a letra da música, vêm a ser suas fontes de inspiração tanto para  a sua música quanto para a sua poesia:  "Minha música vem da/ Música da poesia de um poeta João que/ Não gosta de música/ Minha poesia vem/ Da poesia da música de um João músico que/ Não gosta de poesia". As fontes citadas são, a julgar pela própria letra, o poeta João Cabral de Melo Neto e o músico João Donato: "O dado de Cabral/ A descoberta de Donato". Outro exemplo de referência literária é  A terceira margem do rio, na qual Veloso, juntamente com Milton Nascimento, homenageia outro João, o Guimarães Rosa. Caetano conta em entrevista no DVD "A sede do peixe", do amigo Milton, como se deu a parceria da música. Ele diz que o parceiro chegou com a música já intitulada para que ele a letrasse e que a coisa já estava pronta. "Foi sopa", disse o baiano. Modéstia também é uma virtude dos gênios.

Essa sua característica dialoga com uma mistura de várias áreas do pensamento, como a sociologia, a antropologia e a política como nas composições O cu do mundo, HaitiO estrangeiro, Os outros românticosFora da ordem entre outras. Em Língua, faz uma espécie de elogio à língua portuguesa, falando sobre sua relação com ela e sobre a relevância poética de autores como Luíz de Camões, Fernando Pessoa e Guimarães Rosa: "Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões" (...) "Gosto do Pessoa na pessoa/ Da rosa no Rosa" (...) Assim, para Caetano, "A língua é minha pátria".

Alguns poucos exemplos, aqui apresentados e não bem aprofundados, precisariam de um espaço maior para tal. Talvez um livro. É imenso o universo da obra do autor.


No entanto, as referências que Caetano faz em You don't know me, uma composição do disco Transa de 1972, merece um pouco mais de detalhes, devido a preferência deste blogueiro. O disco foi gravado em Londres e lançado em terras brasileiras em março daquele ano. Marca a volta do músico de seu exílio e por conta disso, é cheio de letras escritas na língua inglesa, muito provavelmente, pelas experiências vividas naquela ilha britânica, como o reggae que ele ouviu por lá e que tanto o impressionou e que conta na ótima Nine out of ten.

A distância do exílio e a saudade do Brasil, ainda que por um tempo curto (2 anos e meio - jul/69 a fev/72), certamente, resultaram na necessidade de afirmação da nossa língua e da nossa cultura, refletida na mistura inglês-português em praticamente todo o disco. Já na não misturada Triste Bahia, título inspirado no poema de Gregório de Mattos ao que se refere, afirma a veia brasileira no ritmo e na solução buscada para a canção, nada européia. Caetano fez essa mescla com muita eficiência. O disco ficou ótimo, moderno e com uma sonoridade pop muito bacana. Na minha opinião, um dos melhores trabalhos seus.

Em You don't know me, Caetano parece certo de que o outro (o estrangeiro) não venha nunca a conhecê-lo ("Bet you’ll never get to know me")  e por isso apresenta suas marcas, suas referências (ou melhor, algumas delas), apresentando-se: "Nasci lá na Bahia/ De mucama com feitor/ O meu pai dormia em cama/ Minha mãe no pisador", aproveitando-se de Maria Moita de Carlos Lyra. Em seguida, cita "Laia ladaia sabatana Ave Maria/ Laia ladaia sabatana Ave Maria", refrão de Reza de Edu Lobo e Ruy Guerra. Finalizando a letra, emenda com o rei do baião, Luiz Gonzaga: "Eu agradeço ao povo brasileiro/ Norte, Centro, Sul inteiro/ Onde reinou o baião", da música Hora do Adeus. Todas, definitivamente, obras fundamentais da música nacional.

O compositor baiano, certo de sua própria importância, ainda faz uma outra referência. Agora a si próprio, na canção incidental Saudosismo, cantada por Gal Costa que a gravou primeiramente em seu disco de 1969. Ainda assim, essa música feita por Caetano é toda recheada de lembranças e referências à Bossa Nova, como títulos de canções, músicos do movimento, iniciando com as mesmas palavras de Fotografia de Tom Jobim: "Eu, você, nós dois...".

Na versão do vídeo abaixo, esse trecho da música citada é tocada pelo guitarrista da banda. Porém, no link mais abaixo é possível ouvir Gal cantando na versão original do disco Transa: "Eu, você, nós dois/ Já temos um passado meu amor/ Um violão guardado, aquela flor/ E outras mumunhas mais".

Caetano é ídolo e tiete ao mesmo tempo, o que o faz aproximar-se do seu público. Embora seja considerado pessoa difícil, por outro lado, revela essa característica de homem comum, que gosta e que reverencia o que gosta. O reconhecimento que ele tem dos artistas e das obras fundamentais, como ele tão bem o é, revela sua principal marca: a sua generosidade


You don’t know me
Caetano Veloso

You don’t know me/ Bet you’ll never get to know me/ You don’t know me at all/ Feel so lonely/ The world is spinning round slowly/ There’s nothing you can show me/ From behind the wall/ "Nasci lá na Bahia/ De mucama com feitor/ O meu pai dormia em cama/ Minha mãe no pisador"/ "Laia ladaia sabatana Ave Maria/ Laia ladaia sabatana Ave Maria"/ "Eu agradeço ao povo brasileiro/ Norte, Centro, Sul inteiro/ Onde reinou o baião"





As referências:

Maria Moita


Reza




Hora do Adeus

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Fita vermelha já!

Semana passada, minha família e eu sofremos um acidente de automóvel e fomos socorridos pelo Corpo de Bombeiros. Como estava consciente (afinal, não foi um acidente grave e sim um grande susto), tive oportunidade de trocar algumas palavras com os profissionais socorristas. Eu que já vinha pensando em aderir à fitinha vermelha no carro, em solidariedade a esses soldados, agora recebendo o seu socorro, confirmei tudo aquilo que já sabia ser verdade. Pude notar e sentir o cuidado, o zelo e o carinho com que o trabalho é feito. Não somente se busca preservar e salvar a vida, mas na medida do necessário, preserva-se também o estado emocional daquele que é socorrido. 

O pronto-atendimento foi eficaz, porém, por praxe, o hospital deve ser público. Mesmo tendo plano de saúde em rede particular, lá fomos para o "Souza Aguiar". O bombeiro que dirigia, diante do meu questionamento quanto a isso, me disse que por eles seria até melhor nos levar para um hospital particular, mas a ordem tem que ser obedecida.

Ao chegarmos ao hospital, fomos atendidos por todos os profissionais pelos quais passamos (médicos, enfermeiros, operadores de raio-x e até maqueiros) com toda presteza. Não sei se foi sorte, acredito que não. Acredito que o profissional da rede pública que lida com o público, sobretudo o mais pobre, faça o seu trabalho com honestidade e zelo.

No entanto, pude perceber a falta ou a insuficiência de alguns recursos, como maca que tivemos que esperar um pouco, assim que chegamos; lençol, que minha mulher pediu, pois sentia frio; trinco nas portas dos banheiros; cadeiras rolantes que não rolavam, pois as rodinhas estavam emperradas; alguma deficiência nos aparelhos de raio-x que dificultava uma melhor resolução nas imagens (ouvi de um operador, inclusive, que um dos aparelhos estava sendo desligado, pois apresentava defeito e seria consertado naquele momento).

Há que se analisar dois aspectos importantes nessa história, o atendimento prestado pelo profissional, pelo ser humano e os recursos necessários para esse atendimento. É sabido que as remunerações pagas a esses profissionais, desde os bombeiros que socorrem nas ruas até os médicos e enfermeiros que continuam esse atendimento dentro dos hospitais, são vergonhosas de tão mínimas. É triste constatar que o trabalho importante da valorização da vida e da dignidade do indivíduo seja tão pouco reconhecido pelas autoridades que historicamente se sucedem no poder.

Nos episódios dos protestos dos bombeiros por melhores salários, ficou claro para a sociedade, através da própria mídia, o escárnio com que são tratados os profissionais que prestam serviços de primeira necessidade (verdadeiros heróis que são), pelas autoridades de Estado. O episódio da prisão dos mais de 400 homens da corporação marcou bem o autoritarismo como foi tratado o assunto. O próprio governador fez sua mea-culpa, recentemente. Obviamente, pressionado pela opinião pública que clamava por justiça e bom senso. (leia matéria)

Na minha humilde opinião, a saúde pública, assim como a educação, pode sim ser oferecida pelo Estado com qualidade e para todos que precisam e que contribuem com impostos. O que basta é vontade, desejo de fazê-la desse modo. Assistindo ao documentário "SOS Saúde", de Michael Moore que fala sobre o péssimo atendimento público na área da saúde da maior potência do mundo, fiquei pensando: é possível fazer bem feito, pois (guardando as devidas diferenças) se Cuba é referência mundial em saúde, porque que não podemos fazer melhor. O capitalismo selvagem americano proporciona cenas como a que Moore mostra em seu trabalho. Americanos que não têm condições de pagar seus tratamentos médicos são levados à ilha de Fidel para lá serem cuidados com todos os direitos que têm os nativos cubanos. Uma vergonha para os EUA.

Assim como foi criado o projeto que obriga políticos a matricularem seus filhos em escolas públicas (veja link do senado), deveria ser criado igual projeto que obrigasse políticos a também utilizarem o atendimento médico-hospitalar público. Essas iniciativas existem para mostrar que a educação básica que o estado oferece é ruim. E quanto à saúde é a mesma coisa.

Ali, naquela cabine da ambulância, junto àqueles que nos tratavam com tanto carinho e gentileza, juro que fiquei constrangido em pensar no meu salário diante dos pouco mais de novecentos reais dos bombeiros. Digo, sem medo de errar, que numa comparação de importância, meu cargo e minha função não chegam aos pés das exercidas por eles.

Ainda na ambulância, disse para o motorista, ao ver um carro à nossa frente com uma fitinha vermelha: _E eu acabei por não colocar a fita no meu carro. E ele me respondeu: _Ainda há tempo!

É isso! Meu carro teve perda total. Porém, antes mesmo de entrar no novo, a primeira coisa que farei será ornamentá-lo com a marca da minha solidariedade, que já é a de toda sociedade.

.