Quando éramos crianças, meus irmãos e eu passamos por uma experiência bastante interessante e importante para as nossas vidas.
Morávamos em São Cristóvão e meu pai trabalhava em Bonsucesso e às vezes ia e voltava à pé para poupar uns trocados. Um dia ele chegou com uma colher que achou na rua no caminho de volta. Não era comum meu pai recolher algo que achasse na rua, mas dessa vez, pensando que tivesse algum valor, resolveu trazer o objeto encontrado para casa. Se não me engano, pensou que pudesse ser de prata. Lembro que minha mãe não gostou, chegando a criticá-lo por trazer algo que não se sabia a procedência, ainda mais sendo um utensílio de cozinha e que serve para levar o alimento à boca. Depois de conversarem sobre o assunto, resolveram ficar com ela. Minha mãe lavou-a bem por muitas vezes e devagar ela foi sendo usada por todos.
Lembro que para nós meninos, a colher não foi bem aceita, sendo batizada, "carinhosamente", por "colher estranha". Tínhamos um faqueiro muito bonito de inox que já estávamos habituados e aquela colher de tamanho um pouco menor, mais escura e pesada destoava mesmo, causando estranheza. Logo, transformamos o objeto em sujeito. Era a colher estranha que ninguém queria usar.
"_Ah! mãe, a senhora me deu a colher estranha. Não quero! Troque-a, por favor!"
"_A colher estranha, não. Não se esqueça, mãe!"
Ficamos com medo e com receio de usá-la. Para nós, nosso jogo de talheres já era bem familiar, de modo que aquele talher intruso estava atrapalhando a harmonia importante da hora da refeição. Era sempre uma briga para não sermos escolhidos por ela, que por vezes, minha mãe nos obrigava a usar, quer por não ter outra à disposição (afinal, não tínhamos muitas colheres) ou para nos acostumarmos à ela. Mãe sabe bem ensinar!
Foi difícil aquele "chororô" todo, mas com o tempo, fomos crescendo e reconhecendo uma certa beleza na peça, à medida que também nos familiarizávamos com ela. Sua diferença das demais acabou por marcar em nossa memória a sua importância histórica.
A história da colher estranha serve de pararelo à muitas outras histórias de preconceitos quanto às diferenças. À medida que nos damos chance de conhecer melhor algo que nos é diferente, crescemos com isso; percebemos que aprendemos mais. E na mesma medida, nos tornamos cativos por essa novidade, ao passo que também cativamos o novo.
É assim com as amizades. Os amigos que vão se chegando aos poucos junto ao nosso convívio familiar, são parentes eleitos pelos nossos corações. É assim, quando adotamos uma criança como filho, quando dedicamos parte do nosso tempo e de nossos recursos aos que necessitam. Sempre nos tornamos presentes na vida desses amigos, como irmãos, pais ou filhos.
Um tempo depois, todos já gostavam da colher e até reconheciam algo de especial nela. Afinal, ela tinha uma história especial, diferente das demais colheres, pois foi meu pai quem a trouxe para casa, resgatada do chão da rua para o nosso lar.
Depois, todos casamos, constituímos nossas famílias e a colher estranha está com algum de nós. Minha mãe mora comigo e talvez ela esteja em minha cozinha. Sei que até pouco tempo atrás, era peça de disputa entre todos que guardam essa história de inicial repulsa e que transformou-se em afeição por tudo que ela resume.