domingo, 31 de outubro de 2010

O bonde da história




Ainda sob os efeitos das pesquisas que realizei para o trabalho de conclusão do curso de história, quero falar do bonde, meio de transporte largamente utilizado desde a segunda metade do século XIX até os anos 1960. No Rio de Janeiro, o bonde foi extinto no ano de 1968, ficando apenas o de Santa Tereza como prova desse marco histórico, em funcionamento até hoje. Pelo seu apelo natural, o tema era muito abordado, quer na literatura quer na música popular. Afinal, era nesse meio de transporte que a população se apertava no seu ir e vir diário e desse convívio saíam muitas histórias interessantes.

O bonde foi uma conquista moderna na área do transporte, sobretudo o elétrico, surgido no final do dezenove. Uma crônica[1] sem título de Machado de Assis conta a história da chegada do bonde elétrico. Ele se impressiona com a altivez do condutor do bonde elétrico que passa por ele que estava em um movido a tração animal: “O que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond, com um grande ar de superioridade. (...) Sentia-se nele a convicção de que inventara, não só o bond elétrico, mas a própria eletricidade”. A crônica é de 16 de outubro de 1892 e apresenta o diálogo dos animais que puxam o bonde antigo. Na conversa, reclamam da vida e falam do medo do desemprego e da desesperança do fim de carreira. Machado humaniza esses personagens, revelando preocupações típicas do homem diante das inovações que sempre trazem as inseguranças quanto ao futuro. Um dos burros argumentava que a tração elétrica, desde que estendida a todos os bondes, seria a senha para a sua liberdade. O outro contra argumentou que o colega não conhecia bem a história da espécie, obviamente, entendendo que a tradição do jugo imputado pelo homem trataria de arranjar outras ocupações para os pobres. 

Na música da primeira metade do século XX, foi uma grande fonte de inspiração para que episódios cotidianos ganhassem destaque nas rimas do samba. A famosa e competente parceria de Wilson Batista e Ataulfo Alves produziria um dos clássicos mais famosos dos anos 1940: “O bonde de São Januário”, que introduziu o tema no contexto político da época. A apologia ao trabalho estava em alta com o Estado Novo, portanto, “a boemia não dá camisa a ninguém, quem trabalha é que tem razão”. “O bonde São Januário/ Leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar”. Em outro samba, "E o 56 não veio...", o mesmo Wilson e Haroldo Lobo retratam o amor e o desencontro: “Eu ontem esperei às sete em ponto/ Ainda dei uma hora de desconto/ Os ponteiros do relógio pareciam me dizer/ Vai embora meu amigo/ Ela não vai aparecer/ Será que ela não veio por que se zangou/ Ou o bonde Alegria descarrilou”.



Imagens do Bonde ao som de "Palpite infeliz" de Noel Rosa
na voz de João Gilberto



[1] Disponível em ASSIS, Machado de. Crônica (107) / A Semana / 1892. In: COUTINHO, Afrânio (org.). Obra Completa. Vol III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985.



  

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Conversa sobre notas e cafés


Para Guilherme um grande interlocutor (in memorian)




_Café para dois, por favor!

Quando foi nosso último café?
Não me lembro
E nós que ficamos, por várias vezes, de marcar um outro...
Lembro-me bem do primeiro.

Ficamos, de fato, sem tempo.
Combinamos uma nova classe.
Quem sabe numa transversal de um tema interessante
Eram muitos temas assim, de comum interesse.
Tudo te interessava.
E a mim, me interessava te ouvir.

Me ocorre agora que... - Opa! Essa fala é sua -
Com licença poética vou usá-la em sua homenagem.
Me ocorre que sua sede de saber, de erudição e tal,
Sei bem como começou: a nota do Borges.
Não o Jorge Luis, o Edson. Aquele dá textos, este dá notas.
Notas dificeis, notas suadas, trabalhosas...

Lembro-me como te incomodou.
É daí o primeiro café e tantos outros cujos temas foram as notas.
Viraram uma obssessão as boas.

Que mal te fez a nota baixa!
Abaixo da crítica. Da sua crítica. Da minha também.
Não me lembro quanto foi: 5, 4, 3 não sei bem ao certo.

Ele sabe. O das notas!

Que bem te fez a nota!
Tua indignação, tua raiva te redimiram.
Teu brio te elevou e muito.
Vem daí meu respeito por ti.

Santo Borges!
Santa NOTA!

...............................................................

Mas afinal, me ocorreu... Opa! Perdão.
Que esse diálogo é apenas um desejo.
Carece de dois.

Me ocorre também que sua xícara está cheia e o café esfriou.
Vou-me embora.
Odeio monólogos!

Por Assis Furriel (Francisco)

Simples Delírio

                                        (para Juiz de Fora)
           

De repente pegar a estrada

E deixar rolar o prazer

Entrar cantando num mundo mais limpo, voltar!

E sentir os meus com saudade

Com vontade de falar, conversar coisa à toa

Subir ladeira, vontade de chegar

Nas calçadas, as flores

Nas casas, o gosto do campo

Gosto de fruta madura

Comer sem parar o tempero mineiro

Viver sem noção das horas

Tocar com os amigos

Caminhar pelas ruas de lá

Fazer do nada uma suave surpresa!


(Assis Furriel/Luiz Cláudio)


sábado, 23 de outubro de 2010

Viva o Rei Pelé!





Hoje, Pelé completa 70 anos de vida. Considerado o maior jogador de futebol de todos os tempos, o "Atleta do século" não teve até hoje alguém que tenha chegado perto de sua majestade. Foi e é a mais perfeita tradução da arte no futebol. Parabéns deste humilde súdito pelo seu aniversário. Viva o Rei! Viva o Rei!!!


Veja alguns gols de sua magestade!



Para quem quiser conhecer melhor a arte de Pelé, fica a sugestão do seu DVD "Pelé Eterno". É fantástico!

EBTG

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O Futebol de Chico Buarque na análise de um fã



A estética maravilhosa do futebol brasileiro pode ser contemplada na letra de O Futebol, música de Chico Buarque, compositor apaixonado por esse esporte que apresenta várias formas de encantamento. O futebol é um
jogo, mas quando bem jogado é arte. E é desse futebol de excelência que quero falar. Qualquer fã apaixonado pelo esporte da bola no pé percebe essa beleza, ou mesmo a espera, ansiosamente, desde o apito inicial. O bom torcedor quer a vitória sempre, mas se possível com arte, pois a vitória é obrigação e a arte é o deleite, é o prazer.

Em O Futebol, Chico dá uma de Armando Nogueira da música e traduz, maravilhosamente, a capacidade que o craque brasileiro tem de fazer do esporte uma arte também. O autor faz uma homenagem aos seus craques preferidos (dos tempos em que ainda sonhava em ser um), imaginando uma linha de passe, que não chegou a existir no seu conjunto, entre Mané Garrincha, Didi, Pelé, Pagão e Canhoteiro.

Na música, Chico confessa os “desejos de craque”, como quando no início, diz que para estufar o filó (rede), num chute sonhado, só se fosse o Rei (Pelé – Edson Arantes do Nascimento). Diz que uma “firula exata” (algo como um drible, um jogo de corpo, um vai, mas não vai) mereceria uma placa exposta em um museu, como uma pintura. Em: “Pintura mais fundamental que um chute a gol com precisão de flecha e folha seca”, Chico faz uma homenagem a Didi (Valdir Pereira), craque da seleção campeã de 1958, que criou o famoso chute batizado de “folha seca”. A razão do nome é que o chute tinha o efeito de percorrer uma trajetória e cair, repentinamente, como uma folha seca. Quando se refere a Garrincha (Manoel Francisco dos Santos), o autor usa a imagem de um parafuso, lembrando que o Mané gostava de girar com a bola ao redor do seu marcador (um João qualquer) pela lateral do campo e quando ameaçava uma finta (drible) que não se concretizava. Canhoteiro (José Ribamar de Oliveira) era lateral de grande habilidade, como Garrincha, só que jogava pela esquerda. Foi craque do São Paulo nos anos 1950, fazendo parte também da seleção brasileira e só não foi à copa de 1958 pelo enorme medo de avião que tinha. Chico Buarque nunca o esqueceu. Pagão (Paulo César Araújo), outro craque da época, também era admirado pelo menino Chico, era centroavante e jogou ao lado de Pelé e Pepe no Santos.

O artista vê o gramado como um tabuleiro, imaginando uma série de desenhos geométricos. Assim, se vê na “vaga geometria”, o corredor, uma paralela rente a linha lateral (quase impossível), como se o craque encontrasse espaço aonde não havia. Revela o sentimento do homem-gol (o artilheiro) que, imaginariamente, rasga o chão e depois o costura, num zig-zag de dribles até o tento final. Descreve a parábola de um homem comum como um “chapéu” (ou “lençol”) e refere-se aos estádios como coliseus modernos onde a galera delira diante de movimentos majestosos.

O futebol precisa de craques dentro das quatro linhas, mas precisa também de outros craques para que fora delas façam a resenha com a mesma majestade. O esporte perdeu o menino Chico, mas ganhou um craque-poeta; para nossa felicidade!

O Futebol (Chico Buarque)


Para estufar esse filó/ Como eu sonhei/ Só se eu fosse o Rei/ Para tirar efeito igual ao jogador/ Qual compositor/ Para aplicar uma firula exata/ Que pintor/ Para emplacar em que pinacoteca, nega/
Pintura mais fundamental/ Que um chute a gol/ Com precisão de flecha e folha seca/
Parafusar algum joão na lateral/ Não quando é fatal/ Para avisar a finta enfim/ Quando não é
Sim no contrapé/ Para avançar na vaga geometria, o corredor/ Na paralela do impossível, minha nega
No sentimento diagonal do homem-gol/ Rasgando o chão e costurando a linha/ Parábola do homem comum
Roçando o céu/ Um senhor chapéu/ Para delírio das gerais no coliseu/ Mas Que rei sou eu
Para anular a natural catimba do cantor/ Paralisando esta canção capenga, nega/ Para captar o visual
de um chute a gol/ E a emoção da idéia quando ginga/ (Para Mané/  para Didi para Mané/ Mané para Didi/ para Mané/ Para Didi para Pagão para Pelé e Canhoteiro)



segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Afinal, somos todos Humanos

A unidade do gênero humano é uma idéia filosófica, religiosa e científica. De fato, o entendimento da natureza do gênero humano, assim como a sua unidade, passa por essas três possibilidades de conhecimento. São, portanto, a filosofia, a religião e a ciência, formas pelas quais o homem busca entender a si mesmo. Logo, a razão, a fé e o empirismo farão parte de todo esforço desse entendimento.

Desde a antiguidade, mais especificamente a partir de Sócrates, os filósofos buscam entender o que vem a ser o homem: sua natureza, origem e destino. O “conhece a ti mesmo” foi bem o início dessa discussão. Embora não concorde com a crença panteísta dos estóicos, é fato que a negação da escravidão já reconhecida pela “antiga Stoa” (Bielefeldt, 146)1, traz luz para as evidências de uma igualdade entre os homens. O iluminismo do século XVIII também corroborou para um direito racional, uma jurisprudência moderna que herdaria a idéia do direito natural, observado desde a antiguidade.

Quanto à idéia religiosa do tema, é bom salientar que cristianismo não é, necessariamente, o Cristo, mas sim o que fizeram e fazem dos seus ensinamentos. Quero dizer que os homens traduzem muito convenientemente as palavras do Evangelho. O cristianismo que Lãs Casas chamava, em sua época, de “imperialismo cristão” (Bielefeldt, 146)2, não considera ou traduz conceitos básicos como o “amar ao próximo como a si mesmo”, máxima cristã que por si só resume a igualdade de direitos entre os homens, visto que ninguém, desse modo, faria a outro qualquer mal que não quisesse para si próprio.

A ciência já provou (apesar de correntes racistas do século XIX terem tentado o contrário) que todos os homens são iguais sob o ponto de vista da genética. Portanto, “raça”, cor, etnia etc. não constituem fatores de diferenciação quanto ao gênero humano. Apesar das alteridades, somos todos humanos!



1 Do livro “Filosofia dos Direitos Humanos” de Heiner Bielefeldt.
2 Idem

sábado, 16 de outubro de 2010

Eu sei mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos
e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita .
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,
para ter com que pagar nas filas com que se cobra.
A gente se acostuma à poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo
e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.

Texto de Marina Colassanti

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O pequeno cantor

O cantor aos 4 anos
Minha mãe morria de medo que eu me tornasse um cantor de sucesso. Achava mesmo que eu tinha talento e que, como tantos outros que foram pobres e alcançaram a fama, poderia ficar famoso, rico e ir embora. Algo como um “Roberto Carlos de São Cristóvão”. Talvez por isso, não tenha me dado muita força; pra não dizer força alguma para ser um músico. Triste sina: minha primeira fã me blindou para o estrelato.

Vai entender coração de mãe!

Minha mãe diz que eu cantava concentrado, desligado de tudo. Cantava pra mim mesmo. Ela fala que se algo me chamasse a atenção eu parava imediatamente de cantar. Era como se algum encanto fosse quebrado.

Eu gostava de ouvir desde o iê-iê-iê da Jovem Guarda até a excelência de Chico Buarque, passando por sambas de Martinho da Vila. Deste último, destaco “Quem é do mar não enjoa”, sucesso de 69, decoradíssimo e cantado sempre nas reuniões de família quando tínhamos a visita do Zé Carlos, amigo e violeiro que adorava acompanhar aquele menininho cantor: “Quem tiver mulher bonita/ Traga presa na corrente/ Eu também já tive a minha/ Mas perdi num samba quente...”. Do “Rei”, cantei tudo daqueles anos 60. Era o meu grande ídolo.

Porém, apesar do rock’n’roll e do samba, o que me fez “viajar” na música foram os versos e a melodia de "Carolina". O meu xará (Buarque de Holanda), então com vinte e poucos anos, fazia a minha cabeça com: “lá fora, amor/ Uma rosa nasceu/ Todo mundo sambou/ Uma estrela caiu/ Eu bem que mostrei sorrindo/ Pela janela, ói que lindo/ Mas Carolina não viu”. É a primeira música que eu me lembro de ter cantado inteiramente letra e melodia.

Nessa época, 1967, eu tinha quatro anos e estive internado para uma cirurgia. O hospital era o Geral de Bonsucesso. Tive algumas complicações e a minha internação foi mais demorada que o esperado. O que parecia ser uma tristeza para os adultos da família, tornou-se uma enorme aventura para o menino artista que fugia da ala infantil para apresentações gratuitas na ala dos adultos, encantados com o repertório recheado de sucessos, cujo principal era sempre “Carolina”. Meu pai ficava irado ao saber das minhas fugas para os lados dos grandes, sem que fossem notadas pelos enfermeiros. Logo, era um grande sucesso ou “bom sucesso” daquele hospital. Todos sabiam do canarinho que se hospedava por lá. Acho que a partir daí, o medo de minha mãe já era bem compreensível.


Carolina (Chico Buarque de Hollanda/1967)


Carolina/ Nos seus olhos fundos/ Guarda tanta dor/ A dor de todo esse mundo/ Eu já lhe expliquei que não vai dar/ Seu pranto não vai nada mudar/ Eu já convidei para dançar/ É hora, já sei, de aproveitar/ Lá fora, amor/ Uma rosa nasceu/ Todo mundo sambou/ Uma estrela caiu/ Eu bem que mostrei sorrindo/ Pela janela, ói que lindo/
Mas Carolina não viu

Carolina/ Nos seus olhos tristes/ Guarda tanto amor/ O amor que já não existe/ Eu bem que avisei, vai acabar/ De tudo lhe dei para aceitar/ Mil versos cantei pra lhe agradar/ Agora não sei como explicar/ Lá fora, amor/ Uma rosa morreu/ Uma festa acabou/ Nosso barco partiu/ Eu bem que mostrei a ela/ O tempo passou na janela/
Só Carolina não viu

O velho pequeno cantor e sua musa



O compositor



sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Os Direitos Humanos no Brasil

        Os Direitos Humanos no Brasil ainda precisam ser, de fato, implementados. Diferente das sociedades americana e francesa que foram moldadas a partir de uma observação dos direitos universais do homem, pensando a nação a partir da promoção do indivíduo, o Brasil apresenta uma história completamente oposta, na qual o poder de poucos sempre impôs o seu jugo sobre a grande maioria impotente. Uma sociedade desigual, na qual a exploração do homem pelo homem foi e continua sendo a marca mais triste de nossa história.
        Mesmo com a chamada Constituição Cidadã de 1988, após mais de vinte anos de autoritarismo militar, a luta pela cidadania é um esforço diário neste país. A partir da constatação de Caetano Veloso em “O Estrangeiro”, música na qual a ordem das coisas é ditada pelo “macho adulto branco sempre no comando”, pode-se concluir como deve ser a vida das mulheres, das crianças e dos negros, assim como as de tantas outras minorias. A retórica sobre a igualdade entre os homens e a questão da cidadania não faz com que, de fato, a sua consagração aconteça naturalmente entre os indivíduos; e mesmo a busca legal por esses direitos, junto ao Estado, é motivo de muito suor. O assunto “Direitos Humanos”, invariavelmente, é objeto de críticas e desconfianças por grande parte da população que, mal informada, não percebe que ela mesma é vítima da falta desses direitos.
        Apesar de avançar bastante quanto à legislação, o Brasil ainda está longe de prover esses direitos aos indivíduos, protegendo-os de toda sorte de violência como as torturas, o excesso da força policial, as execuções sumárias, como as do “massacre do Carandirú” em 1992, considerada a maior violação dos Direitos Humanos na história recente do país, no qual cento e onze detentos foram brutalmente assassinados pela polícia, representante do Estado.
        Se acordasse de um sonho revolucionário francês, ficaria catatônico diante de tanta bestialidade após mais de duzentos anos.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Januário Garcia, meu vizinho famoso!


Com a família visitando-o na exposição "Estética Negra", em Furnas, 2008


Acabei por gostar dessa frase que meu filho João Pedro se orgulha em repetir, após descobrir na TV o nosso querido vizinho e grande figura, o fotógrafo Januário Garcia. Janu, como costuma atender aos mais íntimos, é reconhecido por seu importante trabalho junto ao movimento negro no Brasil, tendo feito vários livros, entre os quais, "25 anos (1980-2005) Movimento Negro no Brasil" e "Diásporas Africanas na América do Sul". Este último tem suas fotos em exposição no Sesc da Tijuca, Rio de Janeiro até novembro.

Além disso, Januário é fotógrafo de várias capas de discos de grandes nomes da MPB, como Tom Jobim, Caetano Veloso, Chico Buarque, Belchior entre outros. A história relatada a seguir conta como foram feitas as capas de dois desses discos. Não pude identificar o autor da entrevista, mas fica o texto na íntegra aqui neste link.


"Januário Garcia, Caçador de Imagens – A foto da Capa".  

"Como foi feita a foto do urubu? pergunto. Januário busca na memória o final do verão de 1976 . Tom regressava dos Estados Unidos com um disco feito com total liberdade e recursos próprios. Voltou estimulado a conhecer melhor os hábitos do urubu. Passava horas no Jardim Botânico e na Tijuca observando a ave. Quando foi hora de escolher o nome do disco não teve dúvida: “urubu”.
O desafio era fazer uma foto do bicho em vôo para ilustrar a capa. Tom pediu ajuda ao filho Paulo Jobim , que tinha uma moderna máquina fotográfica, e foram inúmeras tentativas . Com o tempo, chegaram a conclusão de que precisavam da ajuda de um profissional.
Tom recorreu então a Januário Garcia ” ” Ele me disse que”urubu ” era o disco mais bonito que tinha feito e pediu para embalar o trabalho com o coração” .Foi preciso também certo preparo físico . Januário e Tom passaram semanas em expedições a estrada da Grota Funda, lá pelos lados da Pedra de Guaratiba.. O fotográfo ri ao lembrar de Tom parado num posto de gasolina , perguntando ao frentista se ele tinha visto um urubu passar por ali. Assustado, o rapaz não respondeu e procurou o gerente que reconheceu o compositor e disse , “eles não são malucos não, são só artistas”.
Depois de muita observação , os dois se embrenharam no mato e identificaram num penhasco o local onde morava um Urubu da cabeça vermelha- . Fizeram marcas para não perder o caminho e voltaram no dia seguinte bem cedo, antes do sol nascer. “Foi um dia inteiro só esperando o bicho”, conta Januário. “Lá pelo meio dia o urubu saiu e acompanhamos toda a trajetória do vôo dele, um estudo para a foto”. No dia seguinte repetiram o ritual. ” Tom só quebrou o silêncio para dizer que dali a pouco o urubu iria aparecer e descreveu o trajeto da ave no ar”.
Não deu outra. Na época, os equipamentos fotográficos não tinham os recursos de hoje e Januário se esforçou para enquadrar e focar o bicho em movimento. Foram várias fotos e a escolhida ilustrou duas versões da capa do disco – uma no Brasil, outra nos EUA.
Os olhos de Januário brilham ao lembrar de Tom e o Urubu. Januário mostra na versão americana do disco o agradecimento do maestro ; “thanks to my friend Januário Garcia . Who, like a hunter, got the pictures of this master of the winds”.

Ele busca na estante outros Lps- vejo a clássica foto de Caetano Veloso deitado no colo de Dona Canô, sua mãe. Januário conta que recebeu um telefonema da gravadora de Caetano com a incumbência de fazer a foto do novo disco dele, pegou o avião e foi para Salvador.
Na sala da casa, antes mesmo de conversarem sobre o trabalho, a foto foi feita. Caetano brincava com o filho Moreno no chão e dona Canô estava sentada no sofá. Um determinado momento, Moreno se deitou no colo do pai, que repetiu o gesto com Dona Canô. “Quando vi aquela cena linda , começei a fotografar – filho, pai e mãe e eles nem perceberam”. Depois de um almoço baiano, Caetano falou sobre o projeto do disco. Disse a Januário que iria mostrar a música que sintetizava todo o espirito do disco. “Ele cantou “Terra ” pela primeira vez, foi uma emoção tão forte que não consegui perceber os detalhes da letra , pedi para ouvir novamente “.
Quando Caetano cantou pela segunda vez perguntei a ele o significado de “Terra “. A resposta não poderia ser outra – a mãe. Januário não teve dúvida: “Caetano a capa está pronta”.


domingo, 3 de outubro de 2010

A vitória da esperança!

Enfim, não deu Marina. Isso, nós já esperávamos. Porém, o importante é que essa campanha que o partido verde desenvolveu, em torno da figura sóbria e coerente da candidata do meio-ambiente, deixou um legado bastante significativo para o povo brasileiro.
De agora em diante, de uma vez por todas, um novo discurso político deverá constar na agenda do dia de Brasília. Os quase vinte milhões de eleitores que optaram por ela não podem ser desprezados. Com certeza, esse eleitorado irá cobrar daquele que vier a ocupar a cadeira da Presidência da República um compromisso maior e sério com as questões de natureza sócio-ambientais. O Brasil só tende a ganhar com esse caminho. Creio, como disse a própria candidata ainda hoje, que não houve uma derrota, mas sim uma vitória. O Brasil ganhou uma nova alternativa.
O PV nunca havia conseguido tamanho desempenho nas urnas. A crescente aproximação das políticas do PT e do PSDB abriu uma lacuna, um vazio na oposição, que por sua vez, já não comporta mais uma esquerda ao estilo romântico-revolucionária dos anos de autoritarismos. Essa oposição moderna e clara, surge finalmente com os "verdes", tendo Marina Silva como o grande quadro que já há algum tempo o Brasil não tinha.

Acredito na fala da ex-Ministra, acredito na vitória. A vitória da esperança.

O confronto tradição-modernidade nos sambas de Donga e de Ismael


Donga, caricatura

Esse debate se observa na conversa entre Donga e Ismael Silva, a qual Sergio Cabral registrou em entrevista. Ismael contesta o primeiro sobre o que seria o samba Pelo telefone (de Donga e Mauro de Almeida). Segundo o bamba do Estácio, o famoso samba seria um maxixe. Donga, por sua vez, argumenta que Se você jurar (Ismael Silva e Nilton Bastos) também não é samba, é marcha (Apud Silva: 2001; pp. 69-70).

O samba de características próximas aos outros ritmos como o lundu ou o maxixe encontra suas raízes na ruralidade das fazendas dos séculos anteriores e estas, por sua vez, traduzem os modos da África distante. Já, a razão para a alteração da batida que seria feita pelos sambistas do Estácio, tem na urbanidade a sua explicação. Era preciso cantar e batucar em movimento de marcha. O samba estaria a serviço de um desfile e não mais somente nas rodas dos fundos de quintais. Esses conflitos são, de certa forma, naturais nos processos de modernização. Toda inovação gera desconforto e resistência por parte da comunidade que a recebe: a influência do estrangeirismo; as aspirações feministas de liberdade etc. são exemplos de inovações.

Carlos Sandroni, estudioso da música, fala em seu livro Feitiço Decente dessa transformação, considerando a síncope (que é a ligação da última nota de um compasso com a primeira do seguinte). A alteração rítmica é mostrada por ele nos seus detalhes fundamentais. O autor apresenta trechos das pautas musicais de Jura de Sinhô e de Se você jurar de Ismael Silva, explicando o que mudou. Segundo Sandroni, os sambas dos sambistas do Estácio, como este de Ismael, caracterizavam-se por uma pulsação rítmica mais complexa, agregando mais uma célula rítmica a marcação (Sandroni: 2008; p.32). A história da síncope foi explicada por Ismael Silva a Sergio Cabral de um modo mais simples e mais prático: “O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava (...) Aí, a gente começou a fazer um samba assim: bum bum paticumbum prugurundum...” (Apud Severiano: 2008; p. 120). 

Essa relação das duas gerações é encontrada em texto de Santuza Cambraia Naves para a Revista de história da Biblioteca Nacional. Intitulado Almofadinhas e malandros, o texto diz que “no começo do século XX, o samba nascia com o jeito bem comportado de compositores respeitáveis que dariam lugar a uma geração ligada à boemia, ao improviso e à malandragem”. A autora destaca que os músicos das comunidades baianas tendiam a um comportamento pequeno-burguês. Alguns eram funcionários públicos; tinham a simpatia de políticos; Tia Ciata tinha sua casa freqüentada por muita gente importante. 

Ismael Silva, caricatura
Enquanto que os sambistas do Estácio eram pobres, moradores de favelas, nos morros do bairro. Diferentemente da geração de Pelo telefone, que conhecia música e sabia tocar vários instrumentos, a do Estácio utilizava-se do improviso e de técnicas “primitivas”, se comparadas aos primeiros. A própria temática mudaria em relação à anterior: apareceriam as situações de orgia, malandragem ou vadiagem. No entanto, a geração mais pobre  e menos culta, musicalmente falando, modernizaria o samba pela sua inventividade rítmica (Naves: 2006; pp. 22-27).
 

  
Assista ao depoimento de Ismael Silva:

Obs.: Este artigo faz parte do meu trabalho de conclusão do curso de história do Instituto de Humanidades da UCAM.


sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A capa do Milton


Foto de Cafi


            A lembrança mais marcante que tenho de Milton Nascimento é a apresentação de seu disco “Minas” de 1975, em sala de aula, por D. Fernanda, a nossa professora de Educação Musical da Escola João de Camargo.
O ano era 1977 ou 1978, não sei bem ao certo. Lembro-me que fiquei um tanto perplexo com a iniciativa da professora. Afinal, a turma era muito jovem, um grupo de meninos e meninas de quatorze ou quinze anos, totalmente desinteressados em música difícil. Sim, porque além do Milton ser difícil, pelo menos à primeira audição, o disco citado é um dos mais difíceis. Aliás, os discos do Milton Nascimento da década de 70 eram complicados mesmo.
Fiquei dividido entre prestar atenção na fala de D. Fernanda e nas músicas apresentadas numa pequena vitrola em cima de sua mesa e em me deixar levar na descontração que as aulas de música costumavam proporcionar. Eram como um contraponto às aulas de Português, da séria professora Nádia ou às de Ciências, da austera Marília. Eu me distraía com a turma e ao mesmo tempo ouvia com certa atenção as músicas novas e estranhas que viriam, em bem pouco tempo, se tornar especialíssimas para mim. Até hoje estão no meu enorme setlist de músicas preferidas.
Ouvir “Fé cega, faca amolada”, “Paula e Bebeto”, “Beijo partido” entre outras, apesar de parecer estranho a primeira audição, me trazia um certo incômodo, como se eu pressentisse o que estava por vir: a minha paixão por Milton Nascimento.
Aquela capa... Como D. Fernanda foi capaz de levar aquele disco para a aula? O que a fez tomar essa decisão de apresentá-lo a nós? Será que ela acreditava que fôssemos assimilar algo? Acho que sim, pois sempre fica algo, como ficou em mim. Obviamente, precisei ser apresentado mais demoradamente ao artista e precisei de outros llinks para entendê-lo melhor e apreciá-lo. Hoje considero a capa de “Minas” uma das melhores que conheço. A sua figura negra, de traços fortes me impressionou muito. Passei a me interessar pelas fichas técnicas dos discos, conhecendo os músicos, técnicos, fotógrafos etc.

Bons tempos aqueles do ginásio. Trago comigo outras lembranças importantes de D. Fernanda. Grande ser humano, grande professora. Uma das melhores.